O antigo e amplo casarão hospitalar, de arquitetura neoclássica, ocupava uma quadra inteira, cerca de dez mil metros quadrados e abrigava os pacientes separados em duas alas: do lado direito ficava a ala feminina com aproximadamente oitocentas pessoas e do esquerdo a ala masculina, com cerca de setecentos ocupantes. Os médicos também se dividiam em duas categorias: os que possuíam idéias antigas e praticavam a psiquiatria tradicional com seus diagnósticos, remédios e eletrochoques e os que defendiam idéias novas e propugnavam por mudanças e por uma visão mais humanista e integradora em relação aos internos. Por ser um hospital pobre – contava com poucos recursos do governo estadual – funcionava também como se fora uma Santa Casa de Misericórdia, pois outros hospitais costumavam recusar atendimento à “doentes mentais”. Clinica geral, pequenas cirurgias e até partos eram feitos, sempre que possível, no próprio hospital; só em casos especiais os doentes eram encaminhados para receber atendimento externo.
Entre os internos havia o grupo dos “muito pobres” que não mais recebia visita dos familiares e não contava com qualquer atenção ou tratamento no hospital. Esses esquecidos eram chamados de grupo da abandonoterapia. Outro grupo era o dos “menos pobres”, que ainda tinha familiares e visitas, recebia algum tipo de atenção e tratamento e ainda se esforçava para fazer contatos com os funcionários, médicos e residentes. Eram mantidos pela previdência social. Outro grupo era constituído de pacientes particulares, pouco numeroso e que gozava de maiores regalias entre alguns médicos e funcionários – eram os pagantes, cuja permanência costumava ser muito curta.
Os universitários residentes escolhiam apoiar e seguir a linha progressista dos médicos e funcionários voltados a provocar mudanças na estrutura e funcionamento do velho hospital. Embora simples estudantes possuíam um certo poder dentro do hospital pelo fato de residir lá dentro. Seguiam um sistema de plantões de vinte e quatro horas feito em rodízio, com isso estavam em contato permanente com internos e funcionários. Havia também uma contínua troca de informações entre residentes sobre fatos e ocorrências do dia, o que os deixava razoavelmente atualizados. Os outros funcionários e a direção, ao término do expediente diurno, retornavam para as suas residências e voltavam no dia seguinte. Após o horário de expediente normal o residente de plantão assumia a direção, podendo ser chamado a qualquer hora da noite para decidir sobre assuntos ligados ao funcionamento normal das atividades.
Em três anos de convivência com internos, médicos e funcionários fica mais fácil compreender como é doloroso não ter família, ser pobre e perder a condição de ser tratado com a dignidade que merece um cidadão ou cidadã. O rótulo da “doença mental” determina não apenas uma perda dos direitos, mas, sobretudo, das três grandes aspirações desejadas pelo homem civilizado:
· Perda do poder político (restrição da vontade, do ato, da liberdade).
· Perda do poder econômico (restrição da administração dos bens)
· Perda da dignidade pessoal (cidadania, restrição da identidade social).
O alienado mental, como ainda é chamado, perde sua condição legal de cidadão, perde o poder sobre seus bens materiais, perde o contato com sua família e com a sociedade e cria dentro de si um mundo próprio, onde imagina “compensar” todas as perdas que o seu delírio possa recuperar. Na verdade ele ganha a pobreza, o abandono e a desatenção. Perde a cidadania e ganha outra condição – a de louco.
Um levantamento realizado no hospital com todos os internos confirmou a existência de dois grupos de pacientes: os que ainda conseguiam estabelecer algum contato pessoal e os que não conseguiam (ou não queriam?) fazer contatos. Foram identificadas duzentas e oitenta e três pessoas que viviam em completo estado de abandono, esquecidos pela instituição e que perambulavam sem identidade e sem qualquer objetivo pessoal. Eram como zumbis, já não sabiam falar o próprio nome, nem lembravam dos familiares ou de endereços; eram mortos-vivos esquecidos de si mesmos e de todos. Eram conhecidos como “pacientes crônicos”, “terminais” ou “irrecuperáveis”, isto é, o lixo humano da instituição. Como não participavam de atividades e também não recebiam qualquer tipo de tratamento, foram ironicamente chamados pelos residentes de “grupo da abandonoterapia”.
Os residentes eram proibidos de fazer prescrições por conta própria e de alterar o rumo dos tratamentos médicos instituídos. Ficava difícil, portanto, mudar a situação existente. Começaram, junto com alguns médicos e funcionários, a projetar uma nova organização para o hospital. Era necessário ter muita habilidade porque já sabiam que, mudar e melhorar o atendimento iria mexer com muitos interesses, expor vários erros, apontar omissões e distribuir melhor as responsabilidades.
Pacientes particulares podiam receber visitas diárias e até em fins-de-semana. Os mantidos pela previdência eram atendidos semanal ou mensalmente em entrevistas-relâmpago. Outros podiam ficar meses sem qualquer atendimento. A atuação de alguns médicos chegava a ser absurda e, algumas vezes, até cômica. Havia médicos que prescreviam eletrochoques, outros davam passes magnéticos em seus pacientes e outros médicos os esqueciam durante meses. Certa vez os residentes foram informados pelo enfermeiro de plantão que um profissional costumava reunir quinze pacientes e, numa cena que mais parecia um programa de auditório de televisão, contava piadas e prescrevia em grupo, ou seja, todos os integrantes do grupo recebiam o mesmo padrão de tratamento medicamentoso. A prescrição era escrita em um prontuário e recopiada para os demais.
A proposição de mudanças encabeçada pelo grupo progressista iniciou um estado de guerra na instituição. De um lado ficavam os defensores da estagnação e do outro os adeptos da mudança e reorganização. O diretor do hospital, homem liberal e cauteloso, ocupou uma posição moderadora entre as partes.
Certa vez um dos médicos da ala conservadora, criticando um trabalho de pesquisa iniciado por dois residentes e orientado por outro médico progressista, assim se pronunciou na reunião semanal: “Não acredito que estudantes de medicina estejam preparados para desenvolver um trabalho científico. Há muitos que, com um QI de imbecil, conseguem passar no exame vestibular”. Retrucou uma médica da ala progressista, completando a fala: “... e se formar, doutor!”. Era assim naqueles tempos: batalhas verbais, boicotes, críticas pesadas e ameaças.
O tempo foi conseguindo mostrar que o hospital servia mais para manter os interesses dos poderosos e prepotentes adeptos da ala conservadora do que para atender bem aos internos e oferecer treinamento de qualidade para os residentes. Manter a situação estagnada servia aos propósitos e privilégios adquiridos até então pelos controladores da mente e da “doença mental”; mudar e organizar significava o fim do parasitismo institucional e a perda do poder e dos privilégios de alguns. O “doente mental” servia como matéria prima para a manutenção do caos. Foi possível compreender que a expressão “saber científico” não possui qualquer valor real; que ela pode servir aos detentores do saber segundo suas próprias intenções, sobretudo quando dignidade e cidadania são substituídas pela ganância e voracidade dos que controlam o poder do conhecimento.
A medida em que o hospital ia ficando cada vez menos doente, os pacientes melhoravam. Já não ficavam tão presos e mendigos porque eram estimulados a sair e reivindicar seus direitos. Participavam de festas, jogos, passeios e pequenas viagens e excursões. O estímulo às suas famílias aumentava o número de visitas e provocava a diminuição das doses de remédios e da freqüência dos eletrochoques. Os conservadores se irritavam e alguns pacientes já conseguiam sorrir. Havia um certo temor de irritar demasiadamente os conservadores para evitar que os sorrisos se transformassem em gargalhadas de deboche. Era necessário atenuar os atritos e mantê-los em nível suportável, o importante era que o clima de livre expressividade continuasse crescendo e sufocasse o autoritarismo da instituição. Esse clima era muito bem-vindo e desejado por internados e residentes.
Na verdade o clima existente em um hospital psiquiátrico não difere muito de outras instituições como família, escola e empresa. A liberdade quando se torna expressiva, solidária e responsável acaba se tornando construtiva e alegre.
Muito bom texto, Gonzaga. Estive não poucas vezes nos hospitais psiquiátricos, acompanhando o tratamento de meu irmão (interdito).
ResponderExcluirEram particulares mas alguns tinham ala do SUS, e dei uma "assuntada". Guardo péssima impressão em geral.
Poucos escutam os internos, "loucos" não sabem o que dizem. É assim que uma sociedade desalmada pensa.
Parabéns, estou debutando e voltarei breve.