quinta-feira, 15 de abril de 2010

A saída do hospital

Era o último ano de hospital. O sexto ano da faculdade era muito corrido. Os estágios, nas diversas clínicas, nos deixavam mais fora que dentro do hospital e do quarto dos residentes. Muitas vezes éramos apenas informados da evolução dos casos nos grupos de acompanhamento pelos outros colegas e de forma resumida.

No ano anterior havíamos feito, durante as férias de julho, um estágio intensivo de trinta dias, numa clínica do Rio Grande do Sul. Estávamos pensando em voltar após a conclusão do curso médico e ficar mais três anos nessa clínica para fazer uma residência complementar. Havia a possibilidade de conseguir uma bolsa de estudos para ir a Holanda fazer um curso de pós-graduação em psicoterapia.

De vez em quando parávamos em frente ao quadro pendurado na parede e líamos o texto de Péricles, o filósofo. Ele estava certo. Aquele e outros hospitais psiquiátricos teriam que acabar um dia. Estávamos no ano de 1970. Não era possível que os hospícios ainda fossem durar tanto.

Já no final do mês de outubro sentíamos coisas estranhas por dentro. Uma espécie de saudade antecipada do hospital, misturada com idéias novas, projetos ousados e a sensação de caminhar para formatura e se transformar em médico. Que metamorfose maluca era aquela, de um simples estudante virar médico do dia para noite?

O discurso oficial da nossa equipe era o de humanizar o hospital, organizá-lo para facilitar a ajuda e a aprendizagem, para depois destruí-lo como instituição segregadora de loucos. Já tínhamos percebido que o mito da loucura era um artifício falso. Não havia loucos naquele hospital, havia pessoas pobres, destituídas de poder, de cidadania e de família. Pessoas que reagiam desesperadamente para readquirir os seus direitos normais; de se considerarem e de serem considerados iguais a todo mundo.

Havia uma expropriação de poder. Os internados cediam seus poderes individuais para todos nós, em troca do nosso "direito" de considerá-los pacientes. Suas sanidades, embora existissem dentro de cada um, deveriam ser escondidas por nós, por detrás dos diagnósticos, dos remédios e dos eletrochoques. Suas sensações de desproteção e de abandono abalavam suas certezas de homens e mulheres livres. Nós éramos os loucos visionários que, através de nossa cegueira intelectual, transferíamos nossa doença mental para eles. Sem eles não conseguiríamos ter certeza sobre a nossa sabedoria, o nosso prestígio e o nosso poder. Tínhamos necessidade de "matéria-prima" suficiente para a manutenção do poder da cura, estatuto sem qual não pode existir psiquiatras, remédios e hospícios.

Como poderíamos estar sentindo saudades de um hospital que, nós mesmos, queríamos destruir; será que estávamos ficando loucos? Não sei se poderíamos estar ou não em crise. Às vezes tínhamos a impressão que, após a formatura, iríamos entrar para a ala masculina e ganhar a condição de pacientes com o direito à "tratamento adequado".

Nestes tempos de crise interna, um dos residentes teve um sonho: Eram dois hospitais que, ligados entre si, possuíam um só portal de entrada e saída ao mesmo tempo. Os que saíssem de um, ingressariam fatalmente no outro. Um era cheio de pobres, de médicos, de remédios, de estudantes e de enfermarias. O outro não tinha nada disso. Por ser maior, nele se viam carros, avenidas, hotéis, restaurantes e pessoas bonitas e poderosas. Eram loucos disfarçados de pessoas normais. Disputavam entre si seus poderes e riquezas. Viviam correndo de um lado para outro e não podiam perder tempo algum. Seus delírios de riqueza, prestígio e poder os deixavam tão ocupados e, porisso, nunca conseguiam parar nas esquinas das suas consciências para descansar seus espíritos. Eram loucos varridos estes do outro hospital! Nós também corríamos um grande risco. Deveríamos passar para o outro lado do portão e solicitar internação do lado de lá.

No exato momento em que ia transpondo aquele portão único, o residente acordou assustado e percebeu que estava deitado em sua cama. Ficou pensando no sonho e concluiu que não existem loucos, existem sim muitos mitos que mantém a idéia alucinada de civilização. Uma alucinação coletiva dos que, para se sentirem menos ameaçados, tiveram que delirar para criarem as idéias de segregação, desigualdade e doença mental. Nós também poderíamos estar delirando ao desejar passar mais três anos em outra clínica e viajar para o exterior em busca de mais doenças mentais. Só maluco pode trocar sua sanidade por sentimentos e desejos tão mórbidos.

Levantou e abriu o guarda-roupa. Tirou de lá todos os documentos e papéis que garantiam seu ingresso na clínica em Porto Alegre e a viagem para a Holanda e os foi rasgando um por um. Já não poderia se arrepender depois, se o seu delírio de viajar retornasse a sua cabeça. Uma semana antes ele havia conversado com um velho e experiente professor da faculdade. Ele era o catedrático da cadeira de clínica médica. Um homem sensato, ótimo profissional e excelente cidadão. Havia feito estágios no exterior e era simples no vestir, no falar e bastante atencioso com todos. Havia falado que no sexto ano era comum os estudantes apresentarem a "Síndrome do Delírio Profissional". Sonhavam alto, muito alto. Desejavam tornar-se, num passe de mágica, ilustres e famosos profissionais reconhecidos nacional e internacionalmente; mas que isso iria passando com o tempo, santo remédio para os grandes sonhos. Falou que quando alguém sai da universidade, encontra-se completamente preparado para começar a aprender.

A conclusão do curso universitário não é outra coisa senão um novo exame vestibular e permite ao recém-formado a oportunidade de estudar e aprender cada vez mais. A ilusão do "grande doutor" é mais um "trote" que os veteranos só descobrem depois da festa da formatura. Depois, curados do orgulho e da embriaguez da posse do diploma, descobrem que aquilo é um simples pedaço de papel, um contrato que obriga, o novo e famoso operário, a procurar humilde mente o seu primeiro emprego.

Falou que todo recém-formado deveria submeter-se a um longo trabalho prático no interior para poder consolidar os conhecimentos adquiridos na universidade. Disse que, enquanto os estudantes alimentam grandes projetos, uma legião de pobres, na Amazônia e no resto do país, padece das endemias mais corriqueiras como: malária, tuberculose, verminoses, lepra e das doenças da fome e da desnutrição. Todo recém-formado, antes de alçar seu grande vôo, deveria pagar seu tributo aqui mesmo, na terra onde nasceu, pelo privilégio de ter podido estudar e se formar em uma universidade federal gratuita. Porque contraiu uma dívida para com os pobres do país, aqueles que foram sua "matéria-prima" e os provedores do seu conhecimento. Não se deve investir em sonhos, é preciso que se ande com os pés grudados a terra nos primeiros anos da vida profissional - finalizou.

O residente voltou para o hospital, naquele dia, com a cabeça completamente desorganizada. Sonhos, certezas, realidades e dúvidas estavam todas misturadas e circulavam velozes como camisetas e bermudas no interior de uma máquina de lavar roupas. Depois que sonhou e rasgou os papéis dos estágios a cabeça melhorou. Já era novembro e dentro de poucos dias o mês iria acabar. Havia decidido não sair da Amazônia. Trabalharia por lá mesmo e pagaria sua dívida até que suas asas crescessem mais; ele ainda era um filhote, com poucas penas nas asas, tinha que aprender muito.

Os vários estágios do hospital-escola estavam no final e o clima da turma do sexto ano era de preparativos para o dia da colação de grau. No hospital Juliano Moreira o quarto dos residentes, os corredores e as enfermarias continuavam no ritmo de sempre. Ele deveria retirar seus pertences do guarda-roupa e ceder sua cama para o próximo ocupante. Era assim que tinha que ser. Na verdade eram três vagas que iriam abrir naquele ano. Ele e mais dois colegas do sexto ano, residentes do hospital iriam sair e provocariam com isso uma verdadeira renovação na população do quarto. Apenas dois colegas do quinto ano iriam ficar para orientar os novos candidatos a residente.

Chegou o mês de dezembro. Era um mês que prometia grandes emoções. A proximidade da conclusão do curso, a saída do hospital e o clima do Natal próximo estavam entrelaçados com a idéia de conseguir o primeiro emprego. Era como interromper bruscamente a adolescência e se tornar adulto, sem trocar a calça "jeans". Era como receber alta do hospital sem estar completamente curado, sentindo as pernas fracas e a cabeça tonta. Ele, que tinha visto tanto paciente deixar o hospital, se sentia agora como se pertencesse ao grupo da "abandonoterapia", sem diagnóstico e sem remédio algum.

Na última semana de hospital relembrou muito dos pacientes que ficaram gravados na sua memória. O homem dos sacos, o filósofo, o homem-árvore e de tantos outros que, na verdade, se constituíam em pedaços dele mesmo, fragmentos da vida e da insanidade de um residente interno. Muitas das solidões que acompanhou e ajudou a atenuar, estavam agora somadas dentro de si. Sentia-se muito só e não havia equipe para lhe socorrer na sua solidão. Ele era como o homem dos sacos que, agarrado aos seus sonhos, teria que abandonar sua família, catar papéis e documentos para se sentir seguro e perambular pela vida. Era um homem-árvore que, plantado dentro de si mesmo, não queria caminhar. Teria que fazer como Péricles: abrir a página de classificados e descobrir uma oportunidade qualquer. Estava perdido no presente, agarrado ao passado e com medo do futuro.

Chovia muito naquela manhã de dezembro. Era quinta-feira, dia da festa de fim de ano no hospital. Naquele dia haveria uma confraternização entre funcionários e pacientes do hospital. Haveria também a despedida dos estudantes que encerravam o período de residência. A sala de reuniões estava cheia de gente. Seus olhos, molhados de emoção, viam funcionários, colegas, médicos e pacientes, todos embaçados. Abraços, cumprimentos, despedidas e brincadeiras não foram suficientes para distrair a sua saudade. Foram três anos morando e vivendo ali. Ele não queria mais desinternar-se. Andou, pela última vez, por todas as dependências do hospital. Aqui e ali recebia e dava braços e cumprimentos, desejando feliz Natal e Ano Próspero para os que encontrava pelo caminho. Agora era um médico. A sensação que experimentava naquela última caminhada era diferente; como se pudesse ser, ao mesmo tempo, um médico, um paciente e um residente-plantonista estrangeiro, que caminhava pelos corredores e enfermarias, tendo a impressão que já conhecia tudo aquilo antes. Ele mesmo teria que cuidar da sua doença e do seu último plantão.

A festa terminou, os cumprimentos e despedidas se esgotaram e ele sentia suas pernas descendo, lentamente e a contragosto, a escadaria na frente do hospital. Pela janela do carro seu coração apertado olhava com tristeza a fachada do prédio hospitalar, enquanto o motorista do táxi, impaciente, perguntava pela terceira vez: "Para onde, doutor?". Apenas sinalizou com o dedo apontado para frente, porque, como o Pedro, não podia mais falar naquele momento. Se pudesse, teria dito: "Para a Vida, companheiro!".

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