quinta-feira, 15 de abril de 2010

O homem-árvore

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Naquele tempo se iniciava uma intensa reorganização na estrutura de atendimento do hospital. Os pacientes andavam de um lado para o outro sem atividades, sem plano de trabalho individualizado ou grupal, vagueando a toa pelos corredores e dependências do hospital. Era um verdadeiro depósito de doentes mentais, um hospício.
Uma figura conhecida era vista quase sempre no mesmo lugar. Plantado no corredor de braços abertos, um homem de meia idade e barbudo permanecia imóvel. Seu cabelo era grande e desalinhado; seus olhos eram vermelhos e parados como todo o resto do corpo, fixos no infinito. Parecia um cristo redentor com traje de mendigo.

Nesse dia o residente resolveu aproximar-se dele e colocou-se a sua frente. Perguntou seu nome. Nem se mexeu. Tentou várias vezes fazer contato e não obteve qualquer resultado. Seu cheiro era azedo, uma mistura de fermentações variadas. O residente resolveu sair e ficar de longe observando. De vez em quando ele mexia o braço direito para assoar o nariz com a ponta da camisa rasgada e imunda. Eram poucas a vezes que saia da imobilidade para coçar a orelha ou a bunda.

O residente desistiu e foi ao arquivo procurar seu prontuário. Lá encontrou parte da sua estória. Considerava-se uma árvore, uma planta. Costumava enfeitar-se com folhas que ficavam cuidadosamente amarradas as suas roupas. Não podia se mexer muito porque – segundo acreditava – as flores e frutos que imaginava pendentes de seus galhos (braços) poderiam cair. Não gostava de andar ou correr porque as plantas não fazem isso – argumentava. Considerava-se um autentico vegetal.

Foi encaminhado ao hospital pela polícia porque ficava imóvel, de braços abertos, no meio da rua, atrapalhando o trânsito e arriscando sua vida. Várias vezes foi retirado das ruas e para lá tornava a ocupar a mesma posição.

Era necessário ter paciência para ficar observando durante longo tempo àquela figura curiosa do homem-árvore. Enquanto comia ou andava seus movimentos eram muito lentos e cuidadosos e só costumava se comunicar com o residente que o acompanhava.

Pedi ao residente que o internara para acompanhar junto com ele aquele caso curioso. Só conversava com aquele colega e só para ele desvendava os seus mistérios de planta. Não comia alimentos do seu reino vegetal e bebia muita água. Quando chovia, saía devagar e ficava de braços abertos aproveitando a chuva ou se postava debaixo de alguma bica para beneficiar-se com o jorro da água.

Certa vez cavou um buraco no quintal, enterrou seus pés, e com uma lata velha molhava, de tempo em tempo, as suas raízes (pés). Mudava com freqüência a sua identidade vegetal. De manhã poderia ser uma jaqueira, de tarde u'a mangueira e de noite um abacateiro. Gostava das árvores frutíferas. Nunca pretendera ser um capim ou um pé de couve, segundo as informações do residente.

Só deitava para dormir quando ninguém mais estivesse olhando. Dormia encolhido sobre um cobertor velho, em posição fetal. De manhã bem cedo voltava à posição original de planta. Dava muito trabalho para fazer refeições e pedia que os outros pacientes colocassem a comida bem devagar em sua boca.

Um dia o homem-planta sumiu. Foi encontrado morto no dia seguinte, no fundo do quintal, debaixo de uma goiabeira. Estava deitado sobre o seu lençol velho e bem escondido sob um capinzal fechado. Ficamos tristes com a morte daquela planta humana. Ele e seus mistérios vegetais foram enterrados juntos. Nós havíamos perdido mais uma chance de penetrar e compreender o misterioso mundo do comportamento humano. A causa da morte estava escrita num atestado de óbito: parada cardíaca. Sua família não foi encontrada e teve de ser enterrado como indigente.

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