Um dos colegas do quarto tinha uma linda namorada. Uma loura insinuante e esbelta. Visitava o hospital com freqüência nos sábados e ficava horas conversando conosco. Era simpática, mas um pouco ingênua e orgulhosa de sua beleza. Sentia um ciúme doentio pelo nosso colega residente. Às vezes, em voz baixa, perguntava se alguma garota vinha conversar com ele no hospital. Sempre negávamos: "Jamais! Ele é muito dedicado ao trabalho. Ele te adora!".
Resolvemos um dia fazer uma sacanagem com o colega. Havia um grupo de pacientes jovens na ala feminina que estava sob tratamento pelo uso de drogas. Tinham um comportamento espalhafatoso e viviam paquerando os residentes. Mandavam bilhetes amorosos e eróticos, convites para transas sexuais regadas à maconha e anfetaminas; era o que mais se encontrava nas cartas e bilhetes endereçados ao quarto. Guardamos os bilhetes e uma carta que tinha sido enviada para o residente que namorava a garota loura. Pegamos um jaleco branco, pintamos os lábios com batom, carimbamos o jaleco com vários beijos e o guardamos.
Quando a princesa chegou naquele sábado, o seu namorado era o plantonista do dia. De vez em quando era chamado para atender lá dentro. Aproveitando sua ausência, colocamos nosso plano em ação. Tudo já havia sido previamente combinado. Ficamos bastante reticentes e estranhamente calados com ela. Depois de algum tempo ela, que conhecia nosso jeito alegre e comunicativo, falou: "O que está acontecendo com vocês hoje, estão tão calados”.Olhava perplexa e interrogativa para cada um de nós com seus bonitos olhos azuis.
Um colega falou: "Será que devemos contar o que aconteceu?". Olhava para nós, esperando a nossa reação. Todos, de cabeça baixa, olhavam para o chão com um misterioso ar de embaraço e dúvida. O clima estava ficando pesado quando ouvimos um barulho na porta. Ela foi aberta calmamente pelo namorado plantonista que, com um sorriso no rosto, aproximou-se da princesa e demorou-se num prolongado beijo. Em seguida pediu licença e dirigiu-se ao banheiro. Pedimos, entre sussurros, que ela não demonstrasse nada na frente dele; quando ele saísse iríamos continuar a conversa.
O colega voltou do banheiro, sentou-se na cama, ao lado da namorada, abraçou-a e ficou passando a mão carinhosamente nos seus cabelos enquanto conversava e nos dizia que teria de voltar novamente à enfermaria. Havia um paciente passando mal e ele acabara de prescrever um soro com antibióticos, o prognóstico não era dos melhores. Notou a frieza da namorada e, dirigindo-lhe um olhar carinhoso, falou: "Você está bem?". Ela só balançou a cabeça e esboçou um sorriso artificial. Ele levantou-se, deu outro beijo nos cabelos da loura e falou que iria demorar um pouco e depois voltaria.
A porta voltou a fechar-se e nós voltamos à carga. Tudo dava certo. Ouvimos os passos do colega desaparecendo no corredor. Ela interrompeu o silêncio cheia de curiosidade e falou: "E daí...?"; o residente que havia falado por último continuou: "Eu não sei se a gente deveria estar te falando sobre isso, mas o teu namorado precisa de ajuda. Parece não estar batendo bem da bola".
Falamos que ele não aceitava nossas ponderações sobre seus casos com as garotas da ala feminina. Do seu envolvimento íntimo com elas. Era um grupo de jovens desmioladas e, embora muito atraentes, apresentavam precedentes criminais graves. Mostramos os bilhetes e a carta. Apresentamos como prova o jaleco todo sujo de batom e arrematamos, dizendo que ele passava a maior parte do tempo na ala feminina. Poderia haver risco de gravidez, expulsão do hospital, comprometimento da sua futura vida profissional e complicações com os familiares das jovens pacientes.
A nossa beldade estava com rosto pálido e olhos arregalados, lendo a carta e os bilhetes. Suas mãos tremiam e as primeiras lágrimas começaram a cair. Apertou os olhos e ficou muda por alguns instantes e, logo em seguida, explodiu num choro convulsivo. O seu corpo desabou na cama como o de um animal abatido por um tiro. Afundou o rosto num travesseiro que estava próximo e que abafava suas lágrimas e sua voz.
Ficamos olhando, uns para os outros, e chegamos à mesma conclusão: a brincadeira tinha ido longe demais. Mas era assim mesmo. Nossas sacanagens eram proporcionais à loucura de cada um de nós e do hospital. Estávamos habituados a fortes emoções, grandes gargalhados e trágicos acontecimentos, que se misturavam no nosso dia-a-dia. Com movimentos de cabeça decidimos levar em frente a gozação. Deixamo-la desabafar um pouco e a confortamos com palavras de apoio, para que ela se recuperasse mais rápido. Estávamos preocupados com a volta do colega ou com a entrada de alguma visita no quarto.
Já quase refeita do choque inicial começamos a falar para ela não se preocupar, porque também estávamos fazendo tudo para ajudá-lo e tínhamos certeza que ele acabaria compreendendo e que aquela fase passaria. Era uma questão de tempo. Só temíamos que ele se contagiasse com alguma doença venérea grave. Talvez sífilis, gonorréia ou cancro. Pedimos a Deus que o protegesse com doenças mais leves como: micose ou "chato". Falava-se sério.
Fomos interrompidos por um grunhido profundo e súbito: "Cachorro! Vou matá-lo!". Era um brado guerreiro, cheio de ódio, que saía pelos olhos, pela boca e pelos poros da pele. A doce princesa havia se transformado numa guerreira feroz, numa amazona que clamava por uma lança e um cavalo, para estraçalhar o inimigo. Esmigalhar sua cabeça a machadadas e humilhá-lo sob as patas do seu cavalo. Arrancar-lhe o coração. Levantou-se de repente e queria ir até a enfermaria onde ele estava. Poderia estar com uma das garotas, naquele momento.
Acalmamos a jovem guerreira. Falamos bastante. Perguntamos se ela gostava dele; que essa não era a melhor forma de ajudá-lo, etc, etc. Não adiantava, ela estava possuída pelo capeta, gritava e esmurrava o ar. Pegou repentinamente sua bolsa e, num gesto violento, levantou-se e falou: "Eu vou embora! Digam para aquele cretino nunca mais aparecer na minha frente!". Saiu resfolegando, bateu violentamente a porta do quarto e sumiu.
Ficamos ouvindo, silenciosos, o som dos seus sapatos altos que, como cascos de um cavalo, pisoteavam com força o chão de cerâmica do corredor. Um colega correu para a porta e ainda a viu descer a escada de entrada do hospital. Quando ele retornou ao quarto, explodindo em gargalhadas, apertamos nossas mãos em conjunto e demos do nosso grito de guerra. "Urra! Urra!". Tínhamos cumprido mais uma missão. Rimos bastante e, logo depois, chegou o nosso plantonista. Estava cansado e preocupado com seu paciente. Logo notou a ausência da namorada.
Nosso colega baixinho, com seu cinismo natural, explicou que ele havia demorado muito, mas que ela deixara um recado. Deveria ligar para ela, logo mais à noite e não poderia esquecer, pois ela tinha novidades para contar. O plantonista assentiu com a cabeça, mas estava com o rosto triste e o olhar vago. Sua preocupação estava com seu paciente na enfermaria.
O relógio do quarto bateu as seis badaladas do fim da tarde. Impulsionados por nossos sentimentos de culpa, vestimos nossos roupas e fomos, em junta médica, ver o paciente do colega. Cercamos a cama do enfermo, avaliamos o caso em conjunto e encorajamos o colega. Estava tudo certo. Ele iria melhorar e ficaria curado. Era uma questão de tempo. O plantonista ficou mais aliviado e conversou animadamente conosco. Mais tarde ele ligou para a namorada. Entrou no quarto e comentou que ela não quis atender ao telefone. Não estava entendendo aquela atitude, ela não era uma pessoa temperamental.
A nossa brincadeira não durou uma semana. O plantonista descobriu a sacanagem e explicou para a namorada como era a nossa vida naquele pequeno, mas animado quarto de hospital. No sábado seguinte ela voltou. Estávamos todos conversando preguiçosamente sobre as camas. O plantonista também. Ela entrou com um grande pacote nas mãos, era uma caixa onde havia um bonito e gostoso bolo de chocolate. O nosso plantonista estava trocando de idade naquele dia. Seu doente já estava andando normalmente e ele estava satisfeito com a sua recuperação.
A guerreira loura colocou a caixa em cima de uma cama, tirou o cinto da sua delgada cintura e saiu correndo atrás dos residentes. Todos pulavam de uma cama para outra, tentando livrar-se do ataque inesperado. Quase pisaram em cima do bolo. Conseguiu acertar várias chicotadas que, quando acertava nas costas, doía bastante. Ofegante, recolocou o cinto e falou: "Vocês são uns filhos da puta!". Xingou bastante. Daí a alguns minutos estávamos todos cantando os parabéns para o plantonista, bebendo refrigerantes e cervejas e saboreando o delicioso bolo de chocolate.
quinta-feira, 15 de abril de 2010
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