quinta-feira, 15 de abril de 2010

O candidato

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Iria abrir uma vaga para estudante residente no hospital. Um dos residentes que cursava o sexto ano iria sair em Dezembro. Alguns alunos do quarto e do quinto ano da faculdade freqüentavam o hospital para tentar conseguir a tão disputada vaga. Havia os que, após entrarem em contato com os pacientes, jamais voltavam; outros resistiam heroicamente ao medo e, ainda que temerosos, procuravam se adaptar. Meses antes que essa vaga se consolidasse eles se tornavam assíduos freqüentadores da nossa república. Perguntavam, nos acompanhavam e trocavam idéias sobre os diferentes trabalhos realizados no hospital. O estudante que conseguisse a vaga receberia, além de uma bolsa equivalente a um salário mínimo, alimentação gratuita fornecida pelo hospital e um certo prestígio junto aos outros alunos da faculdade.

Os residentes veteranos possuíam uma relativa experiência, uma espécie de “olho clínico” para perceber o perfil psicológico dos candidatos à vaga. Além de paciência, “sangue frio” e disposição para um trabalho duro, era preciso ter uma razoável estrutura pessoal para conviver durante alguns anos num hospício.

Um dos candidatos era o Tarcísio, jovem de raciocínio lento, muito meticuloso e excessivamente organizado. Não gostava de abraçar os pacientes e evitava os contatos que pudessem macular a brancura das suas roupas. Mas era persistente e não desistia facilmente de lutar pela vaga. Não era muito admirado pelos residentes e pela maioria dos funcionários; sempre perguntava se a comida era de boa qualidade e se o pagamento saia direitinho no final do mês.

Certa tarde os residentes reunidos resolveram submeter o Tarcísio a uma bateria de testes que pudesse comprovar sua boa vontade e interesse pelo trabalho, uma espécie de “prova de fogo” que conseguisse checar seu preparo para trabalhar naquele hospital, separando a vocação pela vaga da vocação pelo trabalho. Esses testes teriam que ser mantidos em segredo pelos residentes até seu término. Era justo que tivesse que enfrentar os testes, pois, pelo que se podia perceber, ele não conseguiria suportar seis meses de permanência naquele lugar, ocupando a vaga desnecessariamente. As experiências diárias com os pacientes eram difíceis e inusitadas.

Certa vez um dos residentes voltara para o quarto rindo muito e, ao mesmo tempo, se lamentando. Um paciente que estava sendo entrevistado havia arrancado bruscamente os seus óculos e os partira ao meio, ficando com a outra metade. O paciente argumentara que repartir os óculos em dois pedaços e ficar com um deles para si, lhe parecia mais justo do que deixar o residente ser proprietário de ambos os lados. Lançar objetos, gritar com o entrevistador, agarrar-se ou rasgar as roupas do interlocutor e fazer reclamações intermináveis, eram situações de rotina naquele lugar.

O Tarcísio precisava engraxar seus sapatos brancos. Fora informado de que havia um paciente experiente nesse ofício. Os sapatos foram levados para a ala masculina e voltaram muito bem engraxados, mas sem o couro dos bicos. Quem os calçasse ficaria com os dedos à mostra. O Tarcísio ficou irritado com o prejuízo, mas o residente que os trouxe falou que o paciente decidiu que assim ficaria melhor, pois fazia muito calor naqueles dias.

Outras brincadeiras foram feitas com o Tarcísio. Colocar bolas de manteiga no bico dos sapatos, cortar todos os botões da roupa ou esconder objetos de uso pessoal, eram formas de testar sua paciência e esportividade. Mas ele resistia e continuava freqüentando a república e o hospital. Mas chegou o dia em que um dos residentes teve uma idéia genial, um verdadeiro teste-limite para o candidato. Esse seria o último a ser feito para completar a bateria.

Havia um senhor já velho - o Habib - paciente antigo no hospital. Morava no mesmo quarto coletivo junto com os residentes. Ajudava nos serviços domésticos: arrumava as camas, recolhia a roupa suja, esquentava a comida, servia as refeições e varria o quarto. Era libanês e veio tentar sua vida no Brasil no tempo em que ainda era bem novo. Muito prestativo e educado já vira passar muitos outros estudantes que viveram parte de suas vidas naquele quarto. Ganhava meio salário mínimo pago pelo hospital, merecia uma atenção especial e recebia presentes dos estudantes e funcionários. De vez em quando entrava em crises delirantes onde relembrava os velhos tempos em que era comerciante de peles e de outros produtos. Foi comerciante ambulante, dono de “regatão1” e havia viajado por grande extensão da Amazônia brasileira e em algumas localidades da Bolívia, do Peru e da Colômbia.

O Habib foi chamado para uma reunião secreta e lhe foram explicados todos os detalhes do novo plano. Ele sorria e concordava balançando a cabeça num gesto afirmativo. Era um veterano e já tinha sido protagonista de muitas encenações e brincadeiras com diferentes gerações de estudantes.

O Tarcísio guardava um certo temor do velho Habib, sobretudo quando este começava a delirar. Fora inventada uma estória sobre suas crises. Dizia-se que, nesses momentos, ele se tornava agressivo, perigoso. Havia, em algumas ocasiões, empunhado garfos e facas para atingir quem estivesse próximo. Era um homicida impulsivo que já havia feito três vítimas, por motivos fúteis, quando ainda exercia sua atividade de comerciante. Não deveria ser perturbado de forma alguma quando demonstrasse comportamento delirante ou esquisito, situações em que poderia alterar seu humor e transformar-se num terrível predador. Essa estória era contada para os estudantes visitantes que não mereciam a simpatia dos residentes.

O Tarcísio foi convidado para almoçar no domingo com os residentes. Nesse dia todos vestiram suas roupas mais velhas e usavam sandálias de borracha. Quando o Tarcísio chegou, cabelos bem penteados e de roupa nova, estavam todos conversando animadamente, sentados ou deitados sobre as camas. Após certo tempo o Habib interrompeu a conversa e, educadamente, convidou a todos para sentarem-se à mesa. A comida era muita e estava com uma aparência convidativa. Todos já haviam se servido quando o velho Habib, de repente, começou a fazer um discurso para o fogão, como se o fogão fosse uma pessoa. Insultava o fogão e, subitamente, entoava canções de amor para ele. Falava e cantava, ora em português, ora em árabe e também em espanhol. O Tarcísio, de olhos arregalados, estava perplexo assistindo aquele ritual estranho. Os residentes estavam quietos e olhavam apenas para seus pratos cheios de comida. Alguém sussurrou para o Tarcísio: “Olha para o teu prato e fica quieto. Ele está delirando”. Ele obedeceu e ficamos assistindo a representação magistral do Habib.

Encerrado o ritual com o fogão, o velho ator se aproximou da mesa dando gargalhadas e falando palavras desconexas. Pegou uma grande concha e começou a distribuir a comida que estava nas travessas por sobre as cabeças de cada um dos participantes do almoço. Colocava macarrão, arroz, salada e feijão por dentro das camisas e por sobre os braços e pernas dos convidados e às vezes provava com a língua e estalando-a comentava: “O tempero está no ponto!” Cantava e discursava enquanto ia lambuzando todos. Os residentes começaram a imitar o Habib e logo estavam depositando comida na cabeça e nas roupas dos vizinhos mais próximos. Rindo e cantando junto com o Habib o grupo formava um coro e manifestava uma grande alegria em participar daquele estranho festival de comidas. O Tarcísio, assustadíssimo, foi sendo obrigado a submeter-se aos procedimentos. Entre sorrisos amarelos e sem compreender o que estava acontecendo, participou a contragosto daquela orgia alimentar.

Quando a comida acabou o Habib, ainda cantando, foi apanhar toalhas de banho para todos e organizou uma fila em frente ao banheiro. Após o banho todos ajudaram na faxina para limpar a sujeira espalhada por sobre a mesa, pelo chão e pelas paredes do refeitório. Foram emprestadas roupas limpas para o Tarcísio voltar para casa. Essa foi a última vez que o vimos no hospital. Perdemos, assim, o nosso candidato.

regatão1 - tipo de comércio ambulante. Aquele que compra em grosso para vender a retalho. Vendedor que percorre os rios de barco, parando de lugar em lugar: "Os regatões são os traficantes que levam em canoas, por todos os rios, lagoas, furos e lugares, mercadorias estrangeiras ou nacionais, e as vendem a dinheiro, ou as permutam pelos produtos do país". (Aurélio).

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