quinta-feira, 15 de abril de 2010

O filósofo

Havia um paciente jovem na ala masculina. Tinha vinte e cinco anos, era branco e possuía uma barba bem cuidada e cabelos longos. Vestia-se modestamente e andava muito limpo, trazendo sempre alguns livros debaixo do braço. Jean-Jacques Rousseau, Bertrand Russell, Michel Foucault e Eric Fromm eram seus autores prediletos.

Era alto, pernas compridas, andar macio. Falava baixo, com palavras cuidadosamente articuladas e com um português precioso, de fazer inveja a qualquer mestre da língua pátria. Gostava de conversar com os residentes e estudantes que visitavam o hospital. Havia passado no vestibular de Filosofia, Ciências e Letras. Cursara até o primeiro semestre dessa faculdade.

Sua família era pobre e, por diferentes razões, resolveu abandonar o curso e correr mundo, como costumava dizer. Veio parar no hospital por que agredia seus familiares que o chamavam de "maluco". Na verdade era um neurótico comum como qualquer um dos médicos, funcionários ou residentes. Ia ficando no hospital porque não tinha para onde ir e sua família não o aceitava mais em casa.

Nunca se metia em brigas, pelo contrário, aconselhava outros pacientes, separava os lutadores e ajudava a enfermagem em diferentes serviços. Era um pacificador, um pensador. Vinha educadamente, após o almoço, perguntar se já tínhamos lido os jornais da manhã; levava-os para ler e os devolvia no final da tarde, dobrados e sem faltar uma folha sequer. Estava sempre bem informado.

Perguntamos se ele poderia transmitir as notícias que lia para outros pacientes que não tinham acesso às informações. Assentiu imediatamente e passou a fazê-lo. Era comum ver-se o filósofo rodeado de pacientes, explicando com calma e interpretando o conteúdo das notícias. Era o orador e porta-voz dos pacientes nas solenidades do hospital, ajudava os funcionários da terapia ocupacional e produzia textos, poesias e discursos que eram lidos em voz alta por outro paciente que treinava para se tornar um grande orador e político.

O filósofo tinha uma visão particular e realista da vida hospitalar, percebia as mudanças que estavam em andamento no hospital e nos elogiava e estimulava nesse sentido. Tomava conta da velha biblioteca do hospital e, vez por outra, ganhava livros novos que eram comprados através da "caixinha" do serviço social. Estava a par dos novos lançamentos literários e, através de empréstimos de colegas, conseguia lê-los.

Com o passar do tempo fomos descobrindo outras habilidades dessa figura humana impressionante. Na realidade conhecia o hospital melhor do que muitos médicos e funcionários. Era um terapeuta inato, paciente, compreensivo, inteligente e disponível para ajudar a quem precisasse. Nunca aceitou remédios do hospital por que tinha a segura convicção de que "as substâncias químicas só tem efeito sobre o corpo e não atuam nas emoções". Era o que falava sempre que lhe ofereciam remédios.

Convidamos o Péricles - esse era o seu nome - para participar dos nossos grupos de acompanhamento intensivo de pacientes. Ele ficou muito emocionado e aceitou prontamente o convite. No dia seguinte produziu um texto belíssimo falando sobre a natureza humana, o trabalho com doentes mentais e a futura extinção dos hospícios. Ficamos tão impressionados com o texto que resolvemos deixá-lo em exposição permanente, pendurado na parede do nosso quarto. Foi transcrito com letras bem elaboradas em papel-linho e ganhou moldura com vidro e tudo. Estudantes e visitas que iam ao nosso quarto não acreditavam que aquela produção tivesse saído da cabeça de um paciente.

O Péricles assistia a todas as reuniões e sempre era uma peça de grande valor no trabalho de ajuda a outros pacientes. Era nosso informante, que levava e trazia discretamente notícias e fatos que ocorriam nas alas masculina e feminina. Pelo fato de viver entre eles era natural que os conhecesse melhor do que nós, num certo sentido da convivência em grupo. Suas sugestões eram sensatas por que se baseavam na observação direta e próxima de quem sabia interpretar com clareza as situações. Era um co-terapeuta atuante e responsável.

Descobrimos que Péricles tinha uma namorada na ala feminina. Ela possuía belos olhos verdes, temperamento calmo e contemplativo como o dele. Queria ser cantora quando saísse do hospital. Para ela o nosso colaborador compunha letras de música, poesias, textos românticos e filosóficos. Conversavam sobre essas produções quando se encontravam. Recebia dela relatórios escritos sobre fatos importantes que ocorriam na ala feminina, através do "correio sentimental". Através desses relatórios detalhados Péricles se mantinha informado do funcionamento interno da ala feminina, das pacientes que melhoravam e pioravam e de outras notícias mais. Por essa razão podia trazer informações tão precisas sem necessitar quebrar o regulamento do hospital, que proibia a entrada de pacientes do sexo masculino na ala feminina. Era um diplomata e um romântico espião com ares de filósofo.

Um dia pediu uma sugestão. Havia lido nos jornais, na página de classificados, uma oferta de emprego para vender livros. Sabia que um dia teria que sair do hospital e resolver sua vida lá fora. Demos a maior força para o Péricles. Emprestamos roupas, sapatos e dinheiro. Naquela manhã bem cedo ele apareceu de cabelos cortados, barba feita e dentro de um bonito terno, emprestado por um residente do quarto. Ajeitamos o nó da sua gravata e, numa olhada geral, vimos diante de nós um perfeito e elegante vendedor de livros. Colocou sua autorização de saída no bolso e foi para o ponto do ônibus, que ficava em frente ao portão do hospital.

Chegou no fim da tarde pulando de alegria e abraçando todos os que encontrasse pela frente. Entrou no nosso quarto com um catálogo grosso debaixo do braço. Falava, entre sorrisos, que tinha sido admitido como vendedor e assinara um contrato de trinta dias para se submeter a um teste de vendas. Teria que cumprir uma cota mínima de vendas para poder ser admitido como vendedor permanente da empresa. Não era uma tarefa difícil, havia muitos livros interessantes e de fácil comercialização, pelo que podíamos observar no catálogo.

Montamos um "posto de vendas" na portaria do hospital e dentro do nosso quarto. Transformamos o Péricles em paciente externo, isto é, tinha autorização durante um mês para entrar e sair livremente do hospital; só precisava voltar para dormir. Ajudamos comprando e vendendo livros para o nosso filósofo, mas esse esforço não teve muito valor, pois, na rua, o novo vendedor conseguiu cobrir a cota mínima em apenas treze dias. Estava muito alegre e trabalhava como um louco. Teria de apresentar uma carta de referência para a empresa no final do mês, documento necessário para poder ser admitido como funcionário do quadro de pessoal. Estava preocupado.

Conseguimos com o diretor e com mais dois médicos do hospital uma solução para o problema. Referências elogiosas sobre a conduta do "auxiliar de enfermagem" Péricles, que havia trabalhado em suas clínicas particulares durante vários anos e sobre sua conduta ilibada e desempenho, dedicado ao trabalho, etc., etc. O nosso colaborador estava empregado e nós perdemos um valioso informante e conselheiro dentro do hospital.

No final do mês fez questão que recebêssemos o dinheiro que lhe foi emprestado. Abriu crédito numa loja onde comprou roupas e sapatos para ele e para a namorada. Trouxe de presente vários pares de meias e os distribuiu entre os que o ajudaram a conseguir o emprego. Estava feliz. Ficou durante oito meses trabalhando fora e dormindo no hospital. Levava seu almoço numa marmita e só voltava para jantar e dormir.

Numa tarde de sábado entrou no quarto triste e cabisbaixo, estava passando por uma grande decepção. Havia voltado da rua trazendo uma caixa de bombons de chocolate embrulhada em papel de presente. No domingo daria os bombons à namorada, pois nesse dia ela faria aniversário. Voltou com o presente nas mãos e foi ao quarto desabafar conosco. Ela havia arranjado outro namorado e não quis receber o presente. Comemos os bombons junto com Péricles enquanto filosofávamos a respeito das surpresas que o amor nos oferece a cada instante. Ele, de certa forma, compreendia que a havia trocado pelo trabalho e não podia se queixar muito. Tentaria esquecê-la e procuraria encontrar outra namorada.

Certa vez anunciou que tinha restabelecido as relações com sua família. Tinha conta bancária, talão de cheques e, além do salário, ganhava boas comissões vendendo livros e revistas para hospitais, clínicas e escolas. Pediu que providenciássemos sua alta para antes do Natal. Iria passá-lo junto com a família e com sua nova namorada, uma colega de trabalho.

No dia em que Péricles saiu, o hospital ficou menos culto e com um colaborador a menos. Voltava de vez em quando para nos visitar e trazer novidades que saiam quentinhas do prelo da "sua" Editora.

Nenhum comentário:

Postar um comentário