Somos e seremos sempre usufrutuários dos bens materiais enquanto vivermos. Nunca proprietários!!! Pois a morte nos ensina que o conceito de “propriedade” é uma frágil ilusão. Cada experiência afetiva pessoal é intransferível e única. Sentir não é ter, é só sentir. Quando sentimos uma alegria não nos tornamos proprietários dela, só a sentimos. Nossos sentimentos morrem junto conosco, nossos bens serão distribuídos entre os vivos.
Furto e Afeto
O furto é uma forma simbólica de ganhar afeto. Todos nós aprendemos a furtar na sociedade civilizada porque precisamos preencher de vez em quando os nossos sacos vazios de afeto. Não importa se o que “temos” está em forma de patrimônio, objetos, dinheiro, capacidade intelectual, talento, prestígio ou qualquer uma outra condição que nos permita sentir satisfação e felicidade.
A nossa identidade pessoal precisa de algo que nos “preencha” de alguma forma, que nos faça sentir que “temos” alguma importância para nós e para os outros.
Com o desenvolvimento tecno-industrial a humanidade experimentou uma série de transformações rápidas no que diz respeito às suas aquisições internas, ou seja, nos sentimentos, princípios e valores individuais que a vivência da cultura nos imprime. Isso pode ter modificado nosso comportamento.
Furtar significa “incorporar, colocar para dentro” algum valor, algo de muito importante para alguém ou para nós. Como o ato de furtar não é aceito socialmente e, muitas vezes, vem acompanhado de reprovação e punição, é comum a pessoa que furta experimentar variados sentimentos como: medo, vergonha, excitação, apreensão, prazer, etc. É como ser apanhado em flagrante num gesto infantil e primário que remete ao mais profundo e escuro local da nossa intimidade afetiva; é uma forma proibida e angustiante de manter contato com os outros e conosco mesmo.
Todos nós, ou já sentimos desejo de furtar ou já furtamos alguma vez na vida. Não interessa o valor do que foi furtado e sim o ato simbólico do furto. O afeto e o furto estão fortemente associados e presentes dentro de todos nós porque vivemos em uma sociedade cujo estatuto central é o de “ter ou possuir para ser visto, amado ou admirado”.
Quem já não ouviu contar casos de pessoas que furtam livros, plantas, canetas, isqueiros, obras criadas por outros, objetos de avião, de restaurantes e de tantos outros lugares ? Todos furtamos. Na maioria das vezes não sabemos explicar de onde se originam esses impulsos estranhos, o que estamos querendo preencher com esses furtos e quais as mensagens afetivas que estão contidas neles. Mas ,mesmo assim, furtamos ! Somos ladrões de afeto e estamos sempre insatisfeitos com as nossas repetidas e arriscadas investidas.
Há três modalidades de furtos: os grosseiros, os medianos e os leves ou sutis. Há quem use a violência para retirar do outro aquilo que deseja para si; há os que mentem para poderem adquirir mais um pouco do que poderia ser adquirido se falassem a verdade; há os que representam durante muito tempo, utilizando-se de vários artifícios, para conseguirem afinal os seus objetivos de ganhar alguma coisa.
Alguns donos de supermercados, lojas, empresas de diversas naturezas furtam nos preços porque sentem que estão perdendo alguma coisa ou poderiam ganhar um pouquinho mais e tentam justificar com elegância a “coerência” desses furtos. Diferentes prestadores de serviços usam seus “truques” para conseguir alcançar os mesmos objetivos.
Pai e filho, irmão e irmão, amigo e amigo, patrão e empregado, homens e mulheres, todos nós, fazemos das nossas relações humanas, com freqüência cada vez maior, um espaço de “ganho material” (sinônimo e código de ganho afetivo) para alcançarmos o nosso objetivo de plenitude interna. A nossa voracidade no ganhar, no entanto, nunca nos preenche porque não consegue atingir o centro do nosso verdadeiro desejo: o afeto. Atributo importantíssimo para o equilíbrio constante do psiquismo e muito raro nos dias de hoje. Tão raro que é preciso furtá-lo por não ser concedido facilmente de forma aberta e gratuita.
Estranhamos muito e sempre foi muito difícil para nós compreender a vida e os relacionamentos das sociedades humanas naturais na sua aparente simplicidade, que não mostra claramente uma rica e complexa rede de experiências afetivas, econômicas, religiosas e muitas outras. Há quem os chame de “povos primitivos” ou de “indígenas”; há os que os considerem atrasados, preguiçosos, sem tecnologia, pré-letrados ou pré-colombianos. Inveja ? Desinformação ? Negação da realidade ? Etnocentrismo ? Não interessa a razão. Lá eles não conhecem o “furto”, assim como o conhecemos aqui, porque não há necessidade de furtar numa sociedade que guardou dentro do seu espaço cultural um lugar privilegiado para o afeto. Dentro e fora desses indivíduos existem lugares e momentos dedicados às relações humanas afetivas que não foram ainda substituídos pela voraz, desesperada e ineficaz “corrida para o consumo” com a qual estamos acostumados.
Quando um índio guarda por algum tempo um objeto desconhecido, trazido por um “civilizado” para a aldeia, por simples curiosidade, não é um furto. O verdadeiro furto se origina do impulso ou da compulsão em apropriar-se de alguma coisa pela necessidade de preencher algum “vazio” afetivo preexistente e gerado por um “modo de viver” que não reservou um lugar especial para o afeto no terreno dos contatos entre as pessoas.
Não vemos e não temos informações de fontes idôneas sobre a ocorrência de furtos nessas sociedades naturais porque não é da natureza humana equilibrada o desejo de fazer contatos interpessoais através do furto. Essa forma inadequada de relacionar-se só vinga nas sociedades que costumamos chamar de “civilizadas”, sinônimo de “sociedades socialmente desequilibradas”. Social, econômica, religiosa e afetivamente desequilibradas.
Outras civilizações mais antigas já percorreram o mesmo caminho que estamos insistindo em repetir e se deram mal: desapareceram e não existem mais. Não souberam construir o Templo do Afeto, local na cultura, onde se deve erigir o altar para o culto das relações afetivas entre os homens, mulheres e crianças. Regredimos no tempo para voltar a adorar os mesmos conceitos antigos de “progresso e desenvolvimento econômico” usados pelos povos antigos.
Ouvimos com freqüência, através do discurso de políticos e autoridades econômicas, expressões como: “Quando o país encontrar sua estabilidade econômica....”, “se a inflação cair...”, “quando houver melhor distribuição da renda...”, todas direcionadas para uma expectativa econômico-financeira, esquecendo-se esses senhores que o fenômeno econômico e suas distorções são resultantes das distorções do comportamento humano, dos seus sonhos, das suas ambições e fantasias e, - por que não dizer ? - das patologias das pessoas e dos grupos de pessoas que controlam a vida política e econômica das nações civilizadas.
Entre os povos das sociedades naturais aprendemos mais sobre progresso e desenvolvimento humano do que em toda a nossa vida nas escolas e universidades civilizadas, nos livros escritos sobre o assunto e nos simpósios, congressos e seminários dos quais participamos. Nunca vemos escolas ou templos deles, nunca assistimos um professor falar entre eles, nada há escrito em livros.
Quem ensinou a eles essa forma tão sábia de viver e conviver ? Não sabemos. Só sabemos que já vivemos como eles vivem hoje, há alguns milênios atrás. Talvez tenhamos esquecido muita coisa do que eles sabem.
Se perguntássemos aos antropólogos porque eles os admiram tanto, responderiam: “Porque vemos neles o que fomos ontem e o que - de uma forma nova e adaptada - poderemos ser amanhã. Não dá mais para viver (e assistir outros vivendo) numa sociedade sem futuro, onde violência, injustiça e fome existem porque dão lucro e geram notícias e empregos.
O furto é o sintoma de uma sociedade infeliz. Uma sociedade “sem espírito de corpo”, isto é, sem eixo cultural, sempre em dúvida se deve ou não situar a figura humana no centro dos seus sentimentos, princípios e valores. Furtamos porque nos sentimos infelizes e solitários e acreditamos que uma grande quantidade de bens materiais possa vir a mitigar o nosso sofrimento. As crianças furtam porque se sentem solitárias ao lado dos pais, os pobres furtam porque se sentem injustiçados e abandonados e os ricos vão continuar furtando porque, como as crianças e os pobres, acreditam que a riqueza material possa lhes dar um dia o afeto, a segurança e a felicidade que todos desejam ter dentro de si.
Furtar é um gesto humano e simbólico de quem se sente vazio de amor. Não devemos reprovar os que furtam, sejam ricos, pobres ou crianças porque todos estão usando a mesma linguagem para expressar a mesma mensagem. Somente os que se sentem satisfeitos internamente com a solidariedade, a partilha, a generosidade, a convivência justa e fraterna não sentem vontade de furtar porque já possuem o que de mais importante existe na vida: a consciência plena da igualdade e da alegria de conviver em harmonia e num espaço afetivo amplo e justo com todos.
O poder, o dinheiro e o prestígio possuem o mesmo significado e a mesma força no interior das sociedades civilizadas. Todos ou quase todos os homens vivem sob a ilusão de conquistá-los um dia. Na verdade esses três desejos do homem moderno representam uma coisa só: o Controle.
Controlar os outros significa para o homem neurótico da nossa civilização “a super-conquista sobre os demais”, a realização maior da sua estória humana, a grande façanha de sair da mísera condição humana e se transformar no “maior super-herói de todos os tempos” e, do alto desse “podium”, se sentir em condições de ganhar a “Taça do Afeto”, a “Medalha da Segurança” e a “Fita do Amor”.
Ter certeza de que todos o amam, admiram e não o deixarão sozinho e de frente com a sua solidão. Só assim sentir-se-á seguro para começar a procurar dentro de si o que já possuía, mas só consegue acreditar que existisse do lado de fora, nos outros e nos objetos que levou sua vida inteira para adquirir. Furtar pode ser uma forma de abreviar esse caminho da busca da felicidade interna para muitas pessoas que se esqueceram de construir esse “podium” e de procurar taças, fitas e medalhas dentro de si próprias. Órfãos de uma sociedade que destrói seus filhos ensinando-lhes o caminho da ganância da competição e da mentira.
Furtar é pedir socorro para os que julgamos proprietários da felicidade. É mendigar afeto para outros mendigos que, como nós, também precisam furtar para se tornarem aparentemente ricos.
Certa vez perguntaram a um mendigo qual o seu maior desejo. Ele respondeu: - Morrer e ir para o céu....lá não falta nada...Deus é Amor, é Esperança e Caridade. Há pessoas que vivem pensando em morrer para poderem encontrar-se com a felicidade. Por que é preciso morrer para ser feliz ? Não é possível ser feliz vivendo ? Furtar ou mendigar é um passaporte para os que ainda não tiveram coragem para atalhar o caminho ? Não sabemos responder essas perguntas mas nos sentimos muito tristes por saber que elas existem.
Perguntaram para um velho pescador, na Amazônia, que costumava distribuir o peixe que sobrava após a venda, para os outros moradores pobres do lugar, se ele não tinha medo de ficar mais pobre ainda e lhe faltar no futuro o que ele generosamente distribuía no presente. Ele olhou demoradamente, sorriu e falou com a serenidade de quem tem certeza: - “Eu sou rico. Nunca faltou nada para mim e o que sobra eu dou pro’s outros. Estou com essa idade e sempre fiz isso, nunca fiquei pobre por causa disso. Todo dia eu pesco e todo dia sobra peixe e eu distribuo com quem não tem. Quando fico doente ou não posso pescar, sempre encontro quem me dê. A riqueza tá dentro da gente e da Natureza, meu filho..! Não acredite nessas mentira que andam inventando por aí....Donde você é ?...Como é seu nome ?...Quer um peixe prá você ? Eu tiro do meu...tem mais lá em casa...”.
Muitos ainda não acreditam que uma sociedade é um corpo só, constituído de vários órgãos que são os povos, de vários tecidos que são as culturas e de várias células que são os homens, mulheres e crianças. A nossa casa é o planeta, a nossa água são os oceanos, rios, riachos e lagoas, as nossas plantas são as florestas e os campos e o nosso alimento é o amor. Quantos já entraram nessa casa e já saíram dela ? O que fizeram durante a sua permanência provisória ? O que faremos nós, os ainda residentes ? Furtaremos os outros moradores para que possamos ocupar os melhores e mais confortáveis lugares da casa ? Cada um é dono apenas dos seus “bens internos” - sentimentos, princípios e valores de caráter, - e do seu livre-arbítrio. Tão dono que os leva consigo após a morte.
Somos e seremos sempre usufrutuários dos bens materiais enquanto vivermos. Nunca proprietários !!! Pois a morte nos ensina que o conceito de “propriedade” é uma frágil ilusão. Cada experiência afetiva pessoal é intransferível e única. Sentir não é ter, é só sentir. Quando sentimos uma alegria não nos tornamos proprietários dela, só a sentimos. Nossos sentimentos morrem junto conosco, nossos bens serão distribuídos entre os vivos.
Só pararemos de furtar quando nos sentirmos próximos uns dos outros, quando essa proximidade for verdadeira, quando nos trouxer alegria, justiça e paz; quando, espantados, olharmos com atenção uns para dentro dos outros e virmos a nossa própria imagem refletir-se do interior do outro, e voltar para nós inteira e igual.
A nossa imagem de pessoas inteiras não pode ser vista em qualquer espelho, só a nossa consciência é capaz de refletir essa imagem que tanto desejamos ver. Furtar é uma mensagem de amor...de falta de amor.
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