Para nós era comum entrar na ala masculina e encontrar uma figura barulhenta, vestida com um paletó surrado e um fiapo de gravatas pendurado no pescoço. Gritava em altos brados e deitava uma falação interminável de cima de um caixote de madeira. Era Raul, discípulo de Péricles, um brilhante orador e destemido político. Raul era um contestador, vibrante e agressivo orador que queria mudar o mundo. Sua tribuna era um velho caixote de cerveja ainda bastante forte para manter no alto os seus longos e inflamados discursos.
Havia sempre uma meia dúzia de pacientes dispostos a escutá-lo. Ficava horas discursando e não parava enquanto houvesse, pelo menos, um espectador a lhe prestar atenção. Quando todos se retiravam ele encerrava a oratória, sempre com a expressão: "Deus salve o Brasil!". Guardava o caixote embaixo de uma escada do pátio onde ninguém mexia. Não suportava interrupções durante sua fala e quando alguém insistia, ficava nervoso e gritava: "Não dou apartes! Não dou apartes!".
Os únicos detalhes que destoavam um pouco no seu traje de grande político e orador emérito, estavam nas suas calças. Eram muito apertadas, acabavam um palmo acima dos tornozelos e não possuíam botões na braguilha. Algumas vezes, quando gesticulava muito, ou fazia movimentos bruscos, tinha que se recompor para evitar risadas da platéia. Mesmo assim não pedia o fio da idéia e prosseguia imperturbável. Em certos momentos o caixote balançava perigosamente, porém nunca foi visto despencar da sua tribuna.
Não gostava de críticas ou sugestões de quem quer que fosse. Apenas Péricles, o filósofo, tinha influência sobre ele, escrevia seus discursos e o aconselhava sobre temas importantes e técnicas de impostação da voz. Tinha melhorado muito a sua oratória desde que se dispôs a receber conselhos e supervisão do seu professor e amigo. Seus temas eram muito variados. Podia falar sobre política, economia, música, animais domésticos, pássaros e borboletas. Quando falava sobre Política ou sobre as Forças Armadas, o tom da sua voz se tornava mais forte e agressivo e o seu pescoço avermelhava e se enchia de grossas veias.
Alguns pacientes o avisaram, talvez para inflamar mais seu ânimo, que ele poderia ser preso a qualquer momento por causa do teor subversivo das suas idéias. Deveria falar baixo para não ser ouvido por algum militar ou policial que por ventura passasse nas imediações do hospital. Estávamos no ano de 1968, em plena vigência da ditadura militar, mas, mesmo assim, o Raul, baluarte da democracia, não baixava a sua voz. Mesmo que fosse preso e torturado - dizia - levaria sua tribuna para dentro da prisão e, de lá, continuaria a sua luta pela liberdade do povo e pela salvação do Brasil!
O Raul sofria de uma gagueira perturbadora. Evitava falar fora dos discursos porque, freqüentemente, era alvo da zombaria dos outros pacientes. Não conseguia falar uma palavra sem se engasgar com a segunda. Senti muita vergonha e costumava andar com lápis e papel no bolso para, através de bilhetes, resolver algumas questões de comunicação. De resto, preferia permanecer calado. Não gaguejava durante os discursos, sua voz era forte e suas palavras fluíam com incrível facilidade.
Levamos o orador para submeter-se a diversos exames especializados e chegamos à conclusão de que ele era portador de uma gagueira puramente emocional. Durante um ano de buscas não conseguimos qualquer pista que nos levasse aos familiares de Raul. A única informação, dada pelo próprio Raúl, era a de que ele havia sido internado aos 15 anos de idade, num reformatório para menores, na ilha de Cotijuba. Não conheceu sua família. Lembrava de uma creche onde havia pessoas que cuidavam dele quando era criança.
Fomos orientados por uma fonoaudióloga para ensinar o Raul a cantar. Assim ele não precisava forçar suas cordas vocais e aprenderia uma nova forma de expressão fônica mais suave e tranqüilizadora.
O maior desejo de Raul era o de ter um discurso gravado em fita cassete. Fizemos com ele uma negociação: aprenderia primeiro a cantar e, após gravar algumas músicas, poderíamos gravar seus discursos. Ele aceitou. Apresentamos o Raul para um paciente que tocava sanfona e, em seguida, para outro que batia bumbo. Formado o trio, iniciaram-se os ensaios que aconteciam três vezes por semana e eram coordenados por um enfermeiro que entendia de música. Após um longo e estafante trabalho o enfermeiro comunicou que o trio já estava em condições de gravar. Nesse período de treinamento o orador quase não fazia discursos, pois era aconselhado pelo enfermeiro para não cansar sua garganta.
O trio não era exatamente um grupo artístico de renome internacional, mas, quando se apresentava nos eventos festivos, atraía um razoável número fãs que, ao término de cada número musical, batia palmas e pedia "bis". Foram gravadas cinco músicas e três discursos na fita. Raul foi diversas vezes orientado para não gritar no microfone e evitar que a gravação saísse ruim.
Enquanto cantava ele não gaguejava e, mesmo fazendo os discursos em voz baixa e pausada, estava conseguindo se sair bem. A sua gagueira estava diminuindo a proporção em que sua fama de cantor aumentava. Seus colegas de trio estavam recebendo muitos bilhetes elogiosos, vindos da ala feminina, que o deixava bastante preocupado. Mas agora era orador e cantor, já não se interessava muito pela política. Disse que quando conseguisse juntar dinheiro iria comprar um gravador e várias fitas, e aí poderia gravar qualquer coisa que quisesse.
Há semanas que essa idéia não lhe saía da cabeça. Andava de um lado para outro cantarolando músicas sertanejas, talvez se preparando para algum projeto artístico no futuro. Certo dia o Raul fugiu do hospital e nunca mais foi visto. Soubemos de notícias suas quase um ano depois. Escreveu uma carta com endereço do hospital e dirigida para o enfermeiro que o havia iniciado na arte da música. Dizia que era vaqueiro e vivia numa fazenda no interior. Possuía um gravador e algumas fitas cassetes. Cantava e gravava nos fins-de-semana com o pessoal da fazenda. Nada informava sobre a sua gagueira.
quinta-feira, 15 de abril de 2010
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