quinta-feira, 15 de abril de 2010

O sanfoneiro



Entrou no consultório o último paciente que iria se atendido naquele tarde de sexta-feira. Era um homem baixo, atarracado, com a cabeça globosa e ar simpático. Seu rosto era expressivo, falava em voz baixa com ritmo pausado, quase suplicante.

O cansaço era visível no rosto do residente, depois de uma semana cheia e movimentada. Ele já se via caminhando para o quarto, tomando um bom banho e jantando. Depois decidiria se iria a um cinema ou a qualquer outro lugar.

Com jeito humilde e embaraçado o homem falou: “Doutor, eu não quero tomar muito o seu tempo; queria só uma explicação e uma ajuda”. Olhando sempre para suas mãos, informou que tocava sanfona e queria se aperfeiçoar mais. Tinha a impressão que as peles que uniam a base dos seus dedos dificultavam o movimento de cada dedo isoladamente. Explicou que quando mexia um dedo o do lado também se mexia. Isso, segundo ele, atrapalhava a autonomia de cada dedo e poderia ser o fator responsável pelos seus erros quando estava tocando o instrumento. Queria também aprender datilografia e esse “problema” poderia incomodá-lo. Perguntou se aquelas peles eram mesmo necessárias e se era possível fazer uma cirurgia para corta-las um pouco. Talvez, assim, pudesse ficar com os dedos mais livres, mais ágeis, diminuindo seus erros.

Os olhos e ouvidos do residente estavam centrados na estória do sanfoneiro. Estava perplexo, pois nunca havia se deparado com um “problema” daquele tipo. Enquanto o sanfoneiro falava o residente, num turbilhão de idéias, pensava nas possibilidades de solução para o caso. Ao encerrar sua estória suplicou para que o residente fizesse a cirurgia de que tanto necessitava. Ao se despedir o residente prometeu que iria ouvir a opinião de um colega que fazia estágio em cirurgia geral. Assim que tivesse uma resposta o informaria sobre o que fazer nesse caso.

Por coincidência o residente encontrou-se com o colega estagiário no dia seguinte e contou o caso do sanfoneiro. Depois de rir muito o estagiário ficou pensativo e falou: “Sabe que eu nunca tinha pensado nisso. Não sei realmente qual seria o efeito desse tipo de cirurgia”.

O residente decidiu arbitrariamente que a cirurgia não deveria ser tentada e comunicou essa decisão ao sanfoneiro. Argumentou dizendo que tudo o que a natureza faz tem algum sentido e função. O sanfoneiro baixou a cabeça e ficou em silêncio, parecendo ter se conformado com a explicação. O residente, porém, ficou em dúvida se agiu de modo acertado, mas com a convicção de não iria ser ele o autor da estranha cirurgia. 

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