Chegou na portaria e deparou com a cena que ainda se desenrolava. O chão estava coberto de cacos de vidro. Duas viaturas da polícia militar estavam paradas na rua. Oito policiais militares, com cordas nas mãos, se protegiam por detrás do enorme portão de entrada do hospital. Um sargento com dois metros de altura, com as mãos sangrando, ainda quebrava os restos de vidros da estante da portaria. Ele estava enfurecido e com cheiro de bebida; insultava os policiais que o observavam através do portão de ferro, pelo lado de fora. O porteiro do hospital, acuado num canto, pedia calma enquanto olhava os pedaços de vidro espalhados pelo chão.
O sargento enfurecido viu o residente chegar e partiu ameaçador em sua direção. O residente sentiu as pernas irem ficando duras enquanto o coração parecia disparar e bater na garganta. Teve a impressão de que um pesado trator iria lhe esmagar sem que pudesse mover-se. O sargento-gigante abotoou-o pelo jaleco e quase o tira do chão. Em seguida falou:
- É você que é o Doutor?
O residente balbuciou:
- Sim...
O sargento falou:
- Já tomei dez cachaças só para poder dar um bafo na cara de um doutor. E deu o bafo.
O sangue voltou a circular no corpo do residente e ele, tentando manter-se calmo, falou:
- Se você soltar o meu jaleco, acho que podemos conversar.
O residente usava toda a sua coragem para aparentar calma e serenidade naquele momento. O sargento olhou ao redor e aos poucos foi soltando sua roupa. Para acalmá-lo e para evitar que suas próprias pernas tremessem o residente convidou-o a sentar-se num banco que estava próximo. As forças do residente estavam voltando e ele perguntou o que estava acontecendo. O sargento falava alto, gesticulava e ia respingando sangue e saliva. Olhava para os colegas e os insultava com palavrões, maldizia sua corporação, criticava o hospital, sua própria família e ameaçava o porteiro. Estava muito agitado. Fazia quatro noites que não dormia e bebia muito para se acalmar.
De vez em quando interrompia o relato para chamar os colegas de covardes, traidores e outras expressões impublicáveis. O residente ficou ouvindo durante quase uma hora as suas queixas e indignações. Falou:
- Não vou ficar internado. Se tentarem isso eu quebro esse hospital. Só quero dormir um pouco e tirar essa confusão da minha cabeça.
O residente respondeu que não seria obrigado a ficar. Poderia cuidar dos ferimentos e logo em seguida, se quisesse, sairia. Mas se quisesse dormir um pouco tínhamos remédio para isso e para a “confusão na cabeça”. Resistiu muito, mas, finalmente, fez um acordo: cuidaria dos ferimentos, dormiria aquela noite no hospital e quando acordasse voltaria a conversar e fazer novo acordo. Ele aceitou, mas na hora de tomar a injeção de sedativo ameaçou o enfermeiro:
- Se doer, eu vou quebrar a cara dele – falou olhando com a cara feia para o enfermeiro.
O residente não concordou com a ameaça e mandou suspender a injeção. Falou que ele estava recusando nossa ajuda e que a alternativa que restava seria a de mandá-lo de volta para o quartel. Ele logo reagiu e concordou que precisava dormir porque estava muito cansado. Foi feito o sedativo e, após alguns segundos, a montanha começou a desmoronar. Suas pálpebras foram ficando pesadas, suas palavras se desarticulavam e aquele corpo de mais de cem quilos se dobrou de lado e foi deitando no banco. Caiu em profundo sono e seus colegas de farda ajudaram o enfermeiro a colocá-lo na maca. Foi levado para o interior do hospital. O residente voltou para sua cama aliviado, mas não conseguia dormir; seu corpo ainda tremia e o ruído do despertador anunciava que um novo dia estava começando.
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