quinta-feira, 15 de abril de 2010

O trambiqueiro

--------------------------------------------------------



O residente mais novo possuía uns primos na cidade. Eram primos afastados com os quais mantinha contatos esporádicos. Eram cinco moças e um rapaz com dezenove anos. Chamava-se Paulo. Desde criança era hiperativo, brigava muito e aprontava mil problemas dentro de casa. Seus pais moraram numa cidade grande do interior e haviam mudado há pouco tempo para a capital. Era uma família de classe média e a filha mais velha, Ana, havia completado o curso de advocacia há dois anos. Todos trabalhavam, só os três filhos menores não estavam empregados.

Numa tarde de sábado Ana chegou ao hospital aflita. Veio acompanhada pelo amante, um senhor mais velho, e pediu para conversar em particular. O residente, seu primo, os conduziu para uma sala de entrevistas e ela falou que seu irmão Paulo havia se metido numa grande enrascada. Estava foragido, sob ameaça de morte e sendo procurado pela polícia. A família estava tentando localizá-lo e ela pretendia interná-lo no hospital sob a alegação de que poderia estar sofrendo das faculdades mentais. Perguntou se poderia ser utilizado algum diagnóstico que o protegesse da ação da justiça. Ela não tinha muitas informações a respeito do caso porque só havia falado com ele durante poucos minutos através de um telefone público.

O residente informou que a internação poderia ser feita pelo prazo máximo de noventa dias, em caráter de observação, até que se chegasse a alguma conclusão sobre o seu caso. Seria tratado sem privilégios, como qualquer outro paciente e seguiria as normas do hospital. O residente, pelo fato de ter grau de parentesco com ele, o encaminharia para um colega que acompanharia seu caso supervisionado por um médico assistente. Ela não gostou muito das condições expostas e perguntou se teria de pagar pela internação. Foi informada que pagaria pela tabela hospitalar, pois apenas as pessoas comprovadamente carentes poderiam receber atendimento gratuito. Saiu um pouco desapontada, mas aceitou as condições.

Dois dias depois chegava o Paulo ao hospital. Rapaz de ótima aparência: alto, forte, simpático, de cor branca e conversa envolvente. Mais parecia um alto executivo de multinacional. Bem vestido, falava um português impecável, possuía uma postura educada e discreta. Seu carisma atingia a todos os que conversassem com ele.

O residente que deveria acompanhar seu caso ficou impressionado com sua facilidade de contato. Morava com seu pai no interior e pouco vinha a capital. Informou que o residente, que era seu primo distante, o vira pela ultima vez quando tinha apenas dez anos de idade. Sua irmã falara que ele roubava objetos de casa para vender, fazia empréstimos e não pagava. Vivia de falcatruas. Havia levado muitas surras dos pais para corrigir-se, mas ia piorando cada vez mais. Ultimamente vivia mais fora do que dentro de casa. Andava bem limpo e perfumado, suas roupas eram sempre caras e elegantes; não lhe faltava dinheiro no bolso. Estávamos diante de um caso típico de personalidade psicopática.

Não demorou muito para que o Paulo tentasse se aproximar do residente que era seu primo e dos outros residentes, para lembrar laços de parentesco e fazer amizade. O residente que era seu primo o tratava com cordialidade, mas evitava intimidades. Ele era oito anos mais novo do que o residente e certo dia começou a chamá-lo de “tio”. Foi advertido que o tratasse pelo nome e usasse de bom senso com as pessoas do hospital. Passou a visitar assiduamente os residentes.

Num domingo de tarde Paulo contou suas peripécias diante de todos os que estavam conversando no quarto. Entre os risos da platéia ele se comportava como um ator, contando os casos e aventuras pelas quais havia passado. Havia falsificado alguns cheques e sacado muito dinheiro de um banco. Comprou jornal e leu uma notícia que anunciava a inauguração de uma usina termoelétrica. Essa usina seria inaugurada dentro de uma semana em uma pequena cidade do interior. Fretou um táxi aéreo e se dirigiu para aquela cidade alguns dias antes da data marcada para a inauguração. Estava muito elegante com terno, sapato novo e uma gravata de seda fina. Havia combinado com o piloto que faria vários vôos e pagaria o total quando retornasse a cidade de origem. Chamava-se Dr. Paulo, engenheiro eletrônico. Dias antes telefonara para o prefeito anunciando que havia antecipado a inauguração por mudanças e alterações na sua agenda. Chegaria no dia seguinte, pela manhã.

O avião desceu às oito horas na pequena pista de pouso. O Dr. Paulo falou para o piloto que retornasse após dois dias para apanha-lo, pois ele teria outras viagens a fazer. O piloto assentiu com um sorriso nos lábios antevendo os lucros que teria com o novo e polido cliente.

Foi recebido pelo prefeito, pelos vereadores e por uma comitiva composta de pessoas importantes da cidade. Havia até uma pequena banda de música presente na recepção. Entre abraços e cumprimentos foi conduzido e instalado na casa do prefeito. Esforçou-se para não aceitar, mas foi gentilmente convencido a não ir para um hotel e nem fazer refeições em restaurantes. Educadamente desculpou-se por ter antecipado a inauguração e pelo fato de ter sido obrigado a substituir o outro engenheiro que havia ficado doente, cujo nome constava no jornal.

Nesses dois dias inaugurou a obra junto com as autoridades, passeou pela cidade, compareceu a almoços e jantares oferecidos e ainda ensaiou um breve namoro com a filha do prefeito. Era um belo partido para qualquer moça que estivesse interessada por um jovem engenheiro solteiro e competente.

Numa conversa com o prefeito, o Dr. Paulo, um pouco embaraçado, anunciou que havia esquecido o seu talão de cheques e que estava com pouco dinheiro no bolso. O prefeito sorriu e, com palmadinhas no ombro, perguntou: “... o Dr. precisa de quanto?”. O Dr. Paulo agradeceu a oferta, mas insinuou que ainda teria de fazer outras viagens e, para isso precisaria de uma quantia maior. O prefeito insistiu e lhe fez a proposta: “... Doutor fique tranqüilo, o senhor vai aceitar a minha oferta e quando concluir as viagens pode depositar o dinheiro na minha conta. Qual é o problema?” Chamou um de seus assessores e determinou que fosse ao banco sacar uma razoável quantia para acalmar o preocupado engenheiro. Ele havia percebido o interesse da filha pelo ilustre visitante e os havia deixado conversando, em algumas oportunidades, talvez imaginando em ter futuras alegrias. Quem sabe se aquele simpático jovem poderia vir a ser um dia mais um membro da família? A sua filha mais nova era a única das filhas que ainda estava solteira.

No terceiro dia o avião do Dr. Paulo desceu na pista e os abraços e apertos de mão se repetiram. Todos batiam palmas e sorriam enquanto o Dr. Paulo acenava do avião. O prefeito estava emocionado e sua filha não pôde conter as lagrimas. Aquele Dr. Paulo era mesmo um homem muito atraente, um pedaço de mau caminho.

Minutos após a decolagem pousava na mesma pista outro avião. Dele desembarcou o engenheiro que na data e hora certas, segundo o publicado no jornal, estava chegando para inaugurar a usina termoelétrica. Chamava-se Dr. Mauricio e vinha acompanhado de mais dois auxiliares para cumprir sua missão. Em outro local descia do avião o Dr. Paulo, satisfeito e com dinheiro no bolso. Pagou o piloto com um “cheque frio” e combinou novas viagens para a próxima semana. No mesmo dia tomou um barco para outra cidade e comprou outro jornal.

Ria-se muito dos casos do Paulo e ele se sentia à vontade no quarto dos residentes. O residente que acompanhava seu caso fora avisado, em diferentes ocasiões, sobre os riscos da excessiva intimidade do Paulo com os residentes e com outros funcionários do hospital. Com apenas um mês de permanência ele já havia obtido privilégios e a confiança do residente responsável por ele. Trabalhou na secretaria onde executou um excelente trabalho de organização e limpeza. Organizou o almoxarifado e deu nova vida a sala da direção. Era rápido e inteligente, respeitado pela maioria dos pacientes e simpático com todos. Obteve cópias de quase todas as chaves de locais importantes do hospital. Já havia feito amizade com o diretor tornando-se seu colaborador e seu “moleque de recados”. No segundo mês já tinha o hospital nas mãos.

Sua irmã Ana telefonava para o residente responsável solicitando informações sobre seu comportamento. Estava satisfeita com os progressos obtidos e pelo fato do Paulo ter ficado dois meses com uma conduta irrepreensível. Mas ficou desconfiada e ligou para seu parente residente para confirmar as informações. Ele informou que sua saída se daria em menos de um mês e que não acreditava na sua recuperação. Tinha a impressão que o Paulo estava preparando o terreno para fugir; já havia comunicado essa idéia ao residente responsável, mas não queria interferir no encaminhamento do caso.

Só faltava uma semana para expirar o prazo da sua permanência quando, num sábado bem cedo, o Paulo sumiu. Sumiram junto com ele: uma razoável quantia em dinheiro da secretaria, máquinas de calcular e de datilografia, vários objetos do diretor e alguns remédios do almoxarifado. Pequenos empréstimos feitos a pacientes e funcionários e alguns cheques de residentes foram junto com ele. Para o residente parente deixou um bilhete: “Prezado tio, até a próxima vez”. Para o residente responsável outro: “Peço desculpas ao amigo, mas minha vida é lá fora”. E assinava embaixo dos bilhetes com uma verdadeira letra de doutor; abaixo dela o carimbo do hospital.

Um comentário:

  1. Luiz Gonzaga:
    Segui sua recomendação e valeu a pena. Já vi Paulos e Paulas pelos caminhos da vida, são vigaristas que atraem simpatia. Estava certo, o do texto, lugar de trambiqueiro não é encarcerado em hospital psiquiátrico. Deixa o danadinho aqui fora, pra vingar a gente ca dando golpe em políticos - estes, na imensa maioria, de muito maior letalidade.

    ResponderExcluir