quinta-feira, 15 de abril de 2010

Greve no ambulatório

'''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''

Ao lado do hospital funcionava um ambulatório. Era um anexo do hospital, de construção mais recente, que atendia as pessoas carentes do bairro. O atendimento era dirigido para portadores de disritmia cerebral, desde epilepsias mais graves até as disfunções leves do ritmo cerebral.

O coordenador do ambulatório era um médico do hospital que se dizia pertencer à ala progressista, mas se comportava, na maioria das vezes, como os médicos da ala conservadora. Era uma personalidade instável que fluía e refluía de acordo com os humores políticos da direção ou com situações ligadas aos seus próprios interesses pessoais. De porte franzino e gestos aristocráticos, quase não se encontrava presente e deixava o funcionamento diário à mercê dos residentes e dos auxiliares de enfermagem que lá trabalhavam. Só tomava alguma atitude quando, por falta de medicamentos ou por motivo de grande importância, era insistentemente solicitado. Estava sempre ausente e não participava da rotina do ambulatório.

Em certa ocasião o estoque de medicamentos utilizados para controle das disritmias se esgotou. Duas semanas antes havia sido avisado várias vezes para dar solução ao problema. Nenhuma providência foi tomada. A ordem, dada por telefone, era para ser usada medicação tranqüilizante em substituição aos anticonvulsivantes normalmente empregados, para “contornar” o problema até que fosse providenciada nova remessa de medicação específica. Os residentes não concordaram com a decisão e foi marcada uma reunião com todos os funcionários.

A conclusão final da reunião foi a de que a ordem não deveria ser acatada. Além de antiética e desonesta, iria refletir-se negativamente na evolução dos casos que estavam sob controle; seria um completo absurdo aceitá-la. A posição a ser seguida seria, depois de esgotada a medicação existente, interromper os controles. Os pacientes teriam que ser avisados com antecedência sobre a possibilidade da falta de medicação nas semanas seguintes. Todos concordaram que os pacientes não poderiam ser enganados e teriam que ser informados sobre a crise pela qual o ambulatório estava passando, uma completa desorganização. Comunicamos ao médico coordenador nossa posição e não recebemos qualquer resposta sobre o assunto.

Contada a medicação que ainda restava foi fixado um dia para o início da greve. Enquanto havia medicação, pacientes e familiares estavam sendo avisados e as providências para iniciar a greve iam sendo discutidas. No dia fixado nenhum residente compareceu ao ambulatório e em várias paredes podiam ser lidos cartazes que explicavam os motivos da interrupção. Os funcionários do ambulatório aderiram ao movimento, mas ficaram cumprindo seus horários de rotina; ficavam informando as pessoas sobre os motivos do movimento.

O médico coordenador tomou conhecimento do fato e acionou a direção do hospital para conter a greve. Já haviam se passado três dias que o ambulatório não funcionava quando os residentes foram convocados para uma reunião da direção do hospital. Lá estavam frente a frente o diretor, o coordenador e os residentes.

Passava das dezesseis horas quando a reunião iniciou. Vimos o coordenador branquela, baixinho e com a cara fechada, afundado em sua poltrona, em frente à mesa do diretor. Sustentava um ar de superioridade e não se dignou em olhar para os residentes. O diretor pediu que todos sentassem e deu inicio a conversa. O coordenador começou falando à maneira de um respeitável magistrado, com uma visível e afetada serenidade. Os residentes foram metralhados, bombardeados e esquartejados pelo coordenador; suas críticas tinham um objetivo arquitetado, isto é, eliminar os residentes do quadro de funcionários do hospital.

O diretor ouvia atento e balançava a cabeça sinalizando estar concentrado na exposição. Os residentes olhavam para a figura insignificante do coordenador e se esforçavam para conter a irritação. Quase uma hora havia se passado e, finalmente, o coordenador encerrou seu discurso. O diretor virou o rosto, compôs seu pescoço cansado e falou para os residentes: “O que vocês tem a dizer?”

A fala seguinte coube aos residentes que explicaram detalhadamente os motivos da paralisação. Foram com freqüência interrompidos pelos apartes do coordenador. Estavam ali para dizer que eram estudantes e que, nessa condição, queriam aprender direito a profissão de médico. Não estavam no hospital para aprender a enganar pacientes e familiares, leigos na arte médica. Não aceitavam uma aprendizagem onde a ética e o conhecimento científico pudessem estar subordinados às irresponsabilidades e deficiências da administração do ambulatório. Finalizaram afirmando que estavam decididos a sair do ambulatório e do hospital se fossem obrigados a se submeter a erros e anomalias da instituição. Eram estudantes solteiros e não tinham nada a perder. Tentariam outra instituição que lhes pudesse oferecer um estágio de melhor qualidade. Mas se procurados pela mídia, falariam sem constrangimento sobre as ocorrências que originaram a greve.

Em certa altura o coordenador chamou ironicamente os estudantes de “os cinco mosquiteiros da doença mental”. Os residentes responderam dizendo que conheciam bem os “camaleões” do hospital, profissionais que se fantasiavam de progressistas para tirar proveito da reorganização profunda que estava acontecendo na instituição. Usaram todo o seu poder de fogo porque sabiam como seria difícil substituir subitamente cinco residentes com razoável experiência por candidatos novos e inexperientes para lidar com o complexo atendimento do hospital e do ambulatório.
Essa estratégia funcionou. O diretor contemporizou dizendo que os pacientes nada tinham a ver com as nossas diferenças internas e que todos deveriam voltar ao trabalho. O coordenador resolveria a questão dos remédios de forma adequada e os residentes voltariam a atender normalmente. A reunião terminou. Os residentes se retiraram e o coordenador continuou afundado em sua poltrona. Estava irritado e desmoralizado por não ter conseguido atingir seu objetivo.

No dia seguinte, pela manhã, fomos informados que uma grande quantidade de medicação anticonvulsivante havia chegado ao ambulatório. Na parte da tarde o funcionamento se normalizou para atender uma grande multidão que se espremia a espera de atendimento. Era uma sexta-feira. Nesse dia o trabalho dos residentes só terminou ao anoitecer. Funcionários e residentes, após o expediente, foram para um bar da esquina comemorar a vitória da greve. Entre os cascos de cerveja vazios e os restos de tira-gostos jazia a figura franzina e insignificante do coordenador – a personagem mais comentada da festa.

Naquele tempo estávamos aprendendo que as distorções nas instituições podem corromper os fundamentos básicos da cidadania. Que os profissionais, independentemente dos seus títulos e funções de chefia, podem prostituir suas consciências para não perder seus empregos ou para submeter-se a interesses de terceiros e poder garantir seus privilégios.

Nenhum comentário:

Postar um comentário