quinta-feira, 15 de abril de 2010

O homem dos sacos

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Havia um paciente no hospital que andava sempre com um saco. Dentro do saco muitos objetos poderiam ser encontrados: pedras, pedaços de madeira, folhas secas, pequenas caixas vazias, etc. Tratava esses objetos como se fossem peças muito valiosas. Seu discurso era o de um magnata, falava que possuía muitas terras e gado, minas de ouro e de pedras preciosas, prédios e navios, aviões e lanchas. Era um homem podre de rico. Vivia solicitando licenças para sair do hospital e cuidar dos seus negócios lá fora. Pedia para todos que o ajudassem a fazer petições, requerimentos e cartas para a direção do hospital, pois estava tendo muitos prejuízos. Seus funcionários o estavam roubando e dilapidando seus bens na sua ausência.

Ficava horas contando os seus papéis velhos e gravetos e os escondia rapidamente quando alguém se aproximava. Prometia grandes somas em dinheiro para os enfermeiros se eles conseguissem a sua “libertação”. Queria, porém, um documento com assinatura do diretor e de todos os médicos do hospital para que pudesse legalizar lá fora a sua vida e seus bens.

Certa vez fugiu do hospital aproveitando-se da distração dos funcionários num dia de festa. Estavam todos no grande quintal que ficava atrás dos prédios, quando ele pulou o muro com o saco nas costas. Ficou oito dias na rua. Regressou no nono dia contando várias estórias. Ao invés de um saco, já possuía dois. O maior, que conseguira na rua, estava cheio de objetos catados pelas esquinas. Disse que não poderia misturar o conteúdo dos sacos porque esses conteúdos pertenciam a dois mundos diferentes: o da rua e o do hospital. Se o fizesse - dizia - poderia desorganizar sua cabeça, que já sabia de cor o que havia e quanto havia dentro de cada um.

Ele era um paciente solitário, gostava apenas da companhia dos seus sacos. Não participava de atividades grupais e estava sempre muito desconfiado. Para melhorar nosso contato com ele passamos a presenteá-lo com vários objetos sem importância como: caixas de fósforos e de chicletes vazias, pedaços de papel de chocolate, prospectos de remédios com figuras coloridas, etc. Ele os recebia para depois selecioná-los. Guardava no saco os que eram aprovados por ele e jogava fora os restantes. Um dia perguntamos a ele por que selecionava os objetos. Respondeu: - “Para separar o joio do trigo”. Explicou que as pessoas e os objetos são divididos em “bons” e “maus”; os bons devem ser guardados e os maus jogados fora.

Ele era um dos pacientes que nunca recebia visitas dos familiares. Era solteiro. Perguntamos sobre sua família. Ficou calado e abriu o saco grande, tirou de lá vários papéis e pôs-se a contá-los na nossa frente. Perguntamos por que resolveu contar os papéis na nossa frente, já que não gostava de fazer isso na frente das pessoas: - “Você é muito curioso, mas é uma pessoa boa” - respondeu. Despediu-se em seguida e saiu pela porta do consultório carregando os dois sacos. Passamos alguns meses conversando com ele sem tocar no assunto relativo à sua família. Já éramos amigos e tínhamos até permissão de retirar alguns objetos de ambos os sacos, um de cada vez, para examiná-los com as nossas próprias mãos. Fizemos vários requerimentos solicitando a sua “libertação” do hospital. Nenhum resultado concreto.

Em uma das nossas conversas tivemos a feliz idéia de associar sua “libertação” à sua família. Falamos que só se sentiria livre para sair do hospital quando o hospital deixasse de significar para ele uma família. Teria que tentar uma reaproximação com a sua verdadeira família para poder livrar-se do hospital.

Passou três semanas sem nos procurar, mas, um belo dia, pediu para termos “uma conversa em particular”. Não queria entrar no consultório para conversarmos porque acreditava que “até as paredes têm ouvidos”. Fomos conversar debaixo de uma mangueira velha que havia no fundo do quintal do hospital. Puxamos dois tijolos e sentamos. Confortavelmente instalados nos tijolos iniciamos a nossa conversa. Com os sacos perto de si, começou a falar sobre sua família.

Morava no interior e sua família possuía uma fazenda com plantações e gado. Possuíam um barco com motor a óleo diesel e um pequeno estabelecimento comercial. Eram oito irmãos e havia muitas brigas quando se tratava de repartir os lucros ou administrar as atividades. Tinha vindo estudar na capital aos doze anos de idade e aos quatorze começou a sentir uma certa confusão na cabeça. Parou de estudar e de receber ajuda dos familiares. Morava com uma tia na capital e esta, sem receber apoio financeiro da sua família, resolveu interná-lo no hospital. Atualmente tinha quarenta e oito anos de idade. Sua primeira internação se dera quando ainda tinha vinte anos.

Percebíamos pela primeira vez que ele estava lúcido e falava a verdade. Naquela conversa o seu delírio de grandeza aparecia apenas poucas vezes; logo em seguida retomava o fio da realidade e continuava falando de forma coerente e compreensível. Durante todo o tempo não olhou uma só vez para os sacos. Terminada a conversa levantamos dos tijolos e fomos andando vagarosamente em direção ao prédio do hospital. Havíamos andado poucos metros quando ele, de repente, se voltou e saiu correndo para buscar os sacos que havia esquecido perto dos tijolos. Era a primeira vez que havia ficado tão longe dos sacos.

Nos dirigimos diretamente para a sala de arquivos do hospital. Examinamos e checamos seus prontuários velhos e o atual. Foi possível fazer a reconstituição da sua vida hospitalar e familiar naquela confusão de informações escritas nos papéis. O que nos falara estava escrito nos prontuários e a sua estória começou a ganhar um sentido diferente e real. Naquela tarde, na reunião de acompanhamento de casos, falamos sobre as descobertas que haviam sido feitas. Residentes, assistentes sociais, enfermeiros e terapeutas ocupacionais foram mobilizados para ativar o contato com familiares, estimular contatos grupais, projetar um plano de trabalho para a sua futura saída do hospital. O homem dos sacos agora já não estava só com seus sacos, possuía uma retaguarda disposta a entender o seu dilema com eles. Na verdade eram muitos esses dilemas.

Era conhecido como Papai Noel. Já havia brigado muito com outros pacientes por causa desse apelido. Agredia todos os que ousassem aproximar-se para abrir seus sacos.

A primeira providência tomada pela equipe foi a de resgatar o seu verdadeiro nome. Chamava-se José. Agora todos passariam a chamá-lo pelo seu nome. As assistentes sociais descobriram o endereço da sua tia e de mais três irmãos que residiam na capital.

As reuniões com os familiares tinham o objetivo de restabelecer os contatos e mostrar que, com a ajuda deles, José poderia recuperar a sua posição normal de membro da família. As resistências foram muitas e intensas, mas as esperanças continuavam.

Nessa época compreendemos como era falso o mito da loucura e do “louco varrido”. O psiquismo humano, analogamente ao sistema imunológico do organismo, possui poderosas defesas para preservar o equilíbrio mental. O comportamento “anormal” mantém preservada sua coerência e seu lado saudável para poder suportar os desequilíbrios da família e da sociedade.

Explicando os códigos:

O enigma de José estava contido simbolicamente na sua relação com seus sacos. O saco pequeno, que guardava objetos adquiridos dentro do hospital, representava seus núcleos afetivos hospitalares (grupo afetivo hospitalar) onde passara grande parte da sua vida. Era pequeno porque não lhe interessava muito que crescesse. O saco grande representava seus núcleos afetivos sociofamiliares (família e sociedade) para onde desejava retornar. Era a sua “libertação”, tantas vezes solicitada por requerimentos e cartas.

Seu delírio de riqueza, representado pelo ouro, dinheiro e propriedades, simbolizava o seu abandono pela família, que o deixava mendigo desse afeto tão importante e valioso e que era recolhido pelo chão em forma de objetos, convencionalmente de pouco valor. Denunciava, ao mesmo tempo, a ambição materialista existente em suas família e na sociedade que conhecia. Como não possuía (naquela época só tinha o saco hospitalar) uma forma concreta e palpável de realizar seu desejo, fugiu do hospital para adquiri-lo e o fez maior, depositando-o num saco bem grande. Sua fuga não foi uma indisciplina, mas, tão somente, o resgate material do seu sonho: uma grande vontade de reaproximação sócio-familiar, isto é, um desejo de reintegrar-se à vida real.

Contar e recontar os objetos de cada saco, era manter-se em contato permanente com os dois núcleos afetivos que possuía. Mantê-los sob severa vigilância significava evitar mais um grande roubo afetivo na história da sua vida. Mantê-los separados serviria para distinguir duas histórias completamente diferentes e opostas entre si. Misturar o conteúdo dos sacos seria misturar seus conteúdos diferentes e desorganizar sua cabeça, a sua vida afetiva. Ninguém poderia intrometer-se para não desordenar o que havia conseguido ordenar com tanto trabalho e durante tanto tempo.

Só quem conseguisse, como ele, perceber essas diferenças poderia aproximar-se dos sacos. Naqueles sacos estavam guardadas as únicas coisas de valor que possuía na vida. Os objetos que não serviam mais para os outros, representavam restos de afeto que ele cuidadosamente coletava e selecionava para depois juntar seus pedaços e incorporá-los, enriquecendo o seu mundo pobre de afeto. Selecionar seria o mesmo que separar as boas das más experiências afetivas pelas quais havia passado.

José havia ensacado a sua vida afetiva durante muitos anos para não se sentir só e para preservar sua identidade, sua memória e suas emoções. Conhecia o conteúdo de cada um dos sacos como a palma de sua mão e os mantinha separados para não perder a sua sanidade mental. Evitava os grupos porque o seu grupo original (sua família) o tinha expulsado precocemente do seu convívio e o havia esquecido. Seu grupo confiável eram os sacos, resumo valioso e silencioso de toda a sua história. Como confiar em grupos, se os grupos o rejeitavam e o consideravam como um estranho, um louco?

Nossa relação de amizade estreitava-se cada vez mais e nossas conversas já eram mais longas e profundas. Já eram, quase todas, feitas dentro do consultório. Fomos apresentando gradativamente os membros da equipe para o José. Após certo tempo já não conversávamos mais sozinhos, havia um grupo que conversava, do qual José era membro participante. No princípio falava pouco, mas com o tempo foi tomando a palavra e se incorporando ao trabalho da equipe. José estava experimentando as vantagens de participar do seu primeiro grupo confiável. Denominamos esse grupo de “Grupo Trabalho e Esperança”.

Certa vez ele nos confidenciou que achava que dessa vez iria conseguir sua “‘libertação”. Aquelas pessoas - segundo ele - não estavam mentindo, pois já conseguira algumas visitas dos irmãos, que lhe trouxeram presentes e dinheiro. Suas roupas já não eram tão sujas como antigamente e os banhos não tão insuportáveis assim. Mas os sacos continuavam perto dele.

Nós compreendíamos cada vez mais a solidão de José e, ao mesmo tempo, o nosso despreparo para lidar com casos semelhantes ao dele. Achamos mesmo que as pessoas olham para os “loucos” da mesma forma como olham para as crianças e adolescentes: como se fossem sacos grandes ou pequenos, completamente vazios, ou melhor, cheios de coisas sem valor por conterem dentro de si quinquilharias que necessitam ser selecionadas pelos conselhos e normas “educativas” dos adultos. Que precisam de muita proteção por não possuírem conteúdo e objetivos próprios. Sentem-se donas desses sacos e os carregam de um lado para o outro, segundo seus próprios sonhos e desejos, sem se importarem com os seus próprios conteúdos de valor. Seriam como os sacos de José: simples objetos, cuja função seria a de proteger seu dono com suas presenças. Protegê-lo de sua insegurança e solidão.

José começou a participar de outros grupos de pacientes e ganhava mais confiança em si mesmo. Fazia anos que não tomava remédios no hospital. Era um esquecido hospitalar desde o tempo em que era conhecido como Papai Noel. A partir das nossas primeiras conversas, a equipe havia resolvido que ele não tomaria remédios como parte do seu tratamento. Nunca lhe foi oferecido nem nunca pediu. Continuou sempre assim: sem remédios. Era um antigo membro do grupo da abandonoterapia (apelido que dávamos aos esquecidos), que agora já possuía identidade e se chamava José ; membro com voz e voto dentro do grupo “Trabalho e Esperança”, escolhido e eleito pela equipe do hospital para ser o cidadão de sua própria libertação.

José pediu-nos que guardássemos os seus sacos na sala de reuniões, onde havia um velho armário cheio de desenhos e objetos confeccionados por pacientes da terapia ocupacional. Perguntou se era um lugar seguro e quem guardava as chaves desse armário. Falamos que era seguro e que as chaves ficavam com o nosso grupo. Perguntamos se ele queria ter uma chave só para ele. Aceitou, e a nova chave foi confeccionada e lhe foi entregue. Andava com ela pendurada no pescoço e dormia com ela. Não tinha mais o trabalho de carregar os dois sacos porque os havia trocado provisoriamente por uma chave, símbolo da sua confiança em nosso grupo.

Com o passar do tempo parou de coletar objetos do chão e entrou para um grupo do Mobral (Movimento Brasileiro de Alfabetização) que havia sido instalado no hospital para pacientes que queriam aprender a ler e escrever. Seus delírios eram pouco freqüentes e só reapareciam quando retirava seus sacos do armário para tê-los junto a si, e desapareciam quando nos confiava a guarda dos mesmos.
Ensinamos a ele que não revidasse quando alguém, relembrando os velhos tempos, o chamasse de Papai Noel. Para nós e para quase todos ele era o novo cidadão chamado José e deveria ser assim para sempre.

Certo dia seus parentes vieram buscá-lo para que passasse o fim de semana com eles. Concordou em ir e queria levar os sacos, mas o convencemos de que ele, como o novo José, deveria levar apenas a chave do armário. Ele aceitou e foi embora com os parentes. Voltou na segunda feira pela manhã com um terceiro saco. Na verdade não era um saco e sim uma sacola. Estava cheia de objetos diferentes dos outros que estavam no armário. Continha escova, creme dental, roupas, sapato, sandálias, cadernos, biscoitos e um pente novo.

Ele estava alegre, mas conversava pouco com os parentes. Aproveitamos a presença deles e fizemos uma reunião conjunta do grupo “Trabalho e Esperança”.

O grupo ia ficando maior com o passar do tempo e já mostrava alguns resultados. Na reunião, os irmãos queriam que ele saísse do hospital e retornasse para a casa de um deles. O José ficou reticente e acabamos concordando que sua saída teria que ser decidida por ele e que deveria aproveitar e concluir seu curso do Mobral.

Já sabíamos muito a respeito da sua vida familiar. Seus irmãos contaram muitas estórias que não estavam escritas nos prontuários velhos a nem nos novos. Parte de sua família morava na capital e possuía boa situação financeira. O pai de José havia falecido há dez anos, mas sua mãe ainda morava na mesma fazenda com os filhos mais novos.

Numa outra reunião do grupo José pediu que guardássemos sua sacola nova, pois temia que os outros pacientes roubassem seus objetos, fato bastante freqüente entre eles. Queria ficar com alguns objetos de uso pessoal e com a chave do armário. Pediu também que queimássemos os outros dois sacos antigos. Respondemos que os sacos antigos ficariam guardados até um ano após sua saída do hospital. Gostaríamos que ele próprio, após um ano e junto com a sua família, voltasse a nos visitar e junto conosco, procedesse ao ritual de incineração dos velhos sacos. Aceitou a idéia e voltou para a sua aula do Mobral que já havia iniciado há cinco minutos atrás.

O novo José já não era o mesmo homem dos sacos e a nossa equipe já não era a mesma dos velhos tempos. Havíamos aprendido, com ele e com outros pacientes, formas novas de preencher nossos “sacos intelectuais” com conteúdos de muito valor. Nós, José e os outros pacientes estávamos melhorando, mesmo estando todos, internados no mesmo hospício.
Concluído o curso do Mobral ele já escrevia uns bilhetes para os seus familiares. As visitas já eram semanais e as saídas do hospital se prolongavam por uma semana a até por um mês. Estava na hora de José sair.

Na nossa última reunião do grupo “Trabalho e Esperança” fizemos uma brincadeira com José: redigimos uma “Carta de Libertação” concedendo ao Sr. José Oliveira da Silva, os títulos de Cidadão Livre, Membro Honorário da Equipe a de senhor de todos os bens e riquezas que ele conseguisse adquirir dali por diante com o seu próprio esforço. Essa Carta continha também todas as aquisições que fizera desde que passara a se constituir um membro integrante do nosso grupo até aquele dia. Só omitimos na Carta a existência dos dois sacos velhos que ainda jaziam no armário, símbolos de sua loucura, e ao mesmo tempo, da manutenção da sua sanidade. Presenças concretas do seu esforço solitário em manter seu próprio equilíbrio, sem a ajuda de ninguém, durante muitos anos.

José saiu do hospital numa sexta-feira de tarde acompanhado por sua sacola nova, pelos parentes, pelos membros do Grupo Trabalho e Esperança e por alguns pacientes que haviam se tornado seus amigos nos últimos tempos. Sentia-se mais confiante e, na porta de entrada do hospital, se despediu de todos, entrou no carro com seus parentes e desapareceu entre os acenos dos que ficaram.

Lembramos que, quando recebeu sua “Carta de Libertação”, percebeu, com um sorriso, a assinatura de quase todos os médicos do hospital, funcionários e pacientes que o conheciam bem. Mais parecia um abaixo assinado. Já sabia ler e escrever. Apôs seu nome na última linha, dobrou o papel e o colocou no bolso.

O Grupo Trabalho e Esperança já não existia mais e se transformou, naqueles dias, num grande saco vazio com a saída do José.

Ele nunca mais retornou para aquele hospital, não voltou para queimar os sacos. O que foi feito dos sacos velhos nem nós sabemos responder. Talvez, esquecidos como tantas outras quinquilharias do hospital, devem ter recebido o destino do lixo ou queimados sem a nossa presença, numa grande fogueira de São João. O que, aliás, era muito comum acontecer com os papéis velhos.

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