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Nas tardes de sábado os estudantes residentes gostavam de reunir-se no quarto coletivo para conversar. As camas, dispostas uma do lado da outra, ficavam cheias de jovens de bermudas e sem camisas.
Rapazes e moças da faculdade, que pretendiam ingressar no hospital ou por simples curiosidade, ficavam conversando a tarde inteira conosco no quarto. Sentados ou deitados nas camas contava-se piadas, falava-se de vários assuntos ou cantávamos acompanhados pelo violão e berimbau. De noite poderiam surgir vários programas. Comentários sobre festas, filmes, peças de teatro ou sobre simples farras, circulavam por todo lado. Era a juventude aproveitando as folgas da faculdade.
A grande e antiga porta de madeira do quarto foi aberta de forma barulhenta e súbita. Todos pararam e olharam. Em seguida ouviu-se um coro de palmas, vaias e assobios. Sorrindo e se rebolando, a figura do Roberto vinha se aproximando do grupo de jovens. Era o residente plantonista do dia. Calçava sapatos brancos, jaleco branco e calças "jeans". Era baixinho e engraçado, um ótimo colega. Havia acabado de internar mais um paciente.
Já de noite, quando quase todos tinham ido embora, ele falou que àquele parecia ser um caso bem interessante. Veio com seu pai e um irmão que narraram sua estória. O paciente era magro e alto, olhos bem abertos, que pulavam de uma para outra pessoa. Quase não mexia com a cabeça. Quando alguém falava, ele apenas virava os olhos na direção da pessoa e ficava prestando atenção. Havia dois meses que não articulava uma só palavra e nem emitia um som qualquer. Tinha parado de estudar e gostava de ficar só no seu quarto. Tinha vinte e dois anos e, uma semana após ter brigado com a namorada, parou de falar com todo mundo. Quando alguém lhe fazia uma pergunta arregalava os olhos e passava a língua nos lábios; repetia sempre esse gesto e era só o que fazia.
No hospital, após algum tempo, resolveu comunicar-se através de gestos, sinais e mímica. Não aceitava escrever ou desenhar. Não gostava de participar de grupos, mas arrumava sozinho sua cama e era muito limpo e organizado. Ainda não conseguia virar a cabeça; quando alguém fazia barulho às suas costas, girava o corpo inteiro para poder olhar. Parecia um robô quando andava.
Seu nome era Pedro. Obedecia a todas as normas do hospital e gostava de marchar. Havia cumprido bem o serviço militar e seu corte de cabelo permanecia o mesmo dos tempos de quartel. Alguns pacientes descobriram o gosto de Pedro pela marcha e pelas ordens militares. Conseguiram um velho cabo de vassoura e fizeram de uma folha de jornal um capacete para ele. Pedro agora já possuía um fuzil e um belo capacete. Certa noite de plantão o Roberto ouviu uma algazarra vinda de uma enfermaria próxima. Eram duas horas da manhã e ele vinha andando pelo corredor vazio, após ter atendido um paciente velhinho que sofria de bronquite alérgica.
Devagar, caminhou para a enfermaria e ficou observando. A cena era engraçadíssima. Vários pacientes formavam um corredor humano, batiam com pedaços de pau nas camas de ferro ou em pequenas latas. Um paciente, com um canudo de papelão na boca imitava uma corneta. Todos desentoavam o hino nacional. Pedro, com seu capacete de papel e com o cabo de vassoura ao ombro, marchava no meio e ia de uma extremidade a outra da enfermaria. Seu rosto era duro e sério como o de um verdadeiro militar e o fundo do seu pijama era frouxo e pendia como um saco velho. O pano branco e transparente do pijama deixava entrever, contra a luz, os seus órgãos genitais que balançavam de um lado para o outro enquanto marchava. Todos estavam concentrados e cônscios dos seus deveres naquela magnífica parada militar.
O homem da corneta tocava fora do ritmo, mas ninguém se importava com isso. A bateria estava mais entrosada, mas uma meia dúzia de pacientes semi-sedados se encarregava do contra-ritmo. Estavam tão envolvidos no desfile que não perceberam a cabeça do Roberto esgueirando-se pela porta para assistir aquele triunfante espetáculo marcial.
A barriga doía e os olhos lacrimejavam de tanto rir. O Roberto assustou-se quando pressentiu que alguém se aproximava por trás dele. Era o enfermeiro do plantão noturno que também tinha ouvido a barulheira. Colocou o dedo nos lábios, em sinal de silêncio, para que ele não perturbasse o espetáculo. Ficaram ali assistindo e rindo por vários minutos.
De vez em quando o líder do grupo pedia silêncio e dava ordens para o Pedro: "Meia-volta, volver!". "Descansar!". "Apresentar armas!". Todas essas ordens eram obedecidas e quando o Pedro passava perto do líder, batia continência. Mas não falava uma só palavra.
Após alguns minutos, residente e enfermeiro resolveram interromper a parada militar, pois já estava incomodando as outras enfermarias. Apareceram de corpo inteiro na porta e os pacientes notaram a presença. A bateria parou, o corneteiro escondeu o seu canudo debaixo da cama e o Pedro tirou o capacete, guardou o cabo de vassoura e se enfiou embaixo do lençol. Todos deitaram. Só os pacientes semi-sedados continuaram batendo nas latas. Retiraram as latas e as baquetas das suas mãos e pediram que fossem dormir porque já era muito tarde. O residente foi para o quarto com os olhos cheios de lágrimas e a barriga doendo de tanto rir. Custou a dormir nessa madrugada. Na cama ao lado roncava o outro residente que acordou assustado com as gargalhadas do Roberto; perguntou o que estava acontecendo e se ele estava passando bem. Quase não conseguia falar e contar o que acabara de assistir na enfermaria. O outro estava com muito sono e deu apenas um leve sorriso.
O tempo passava e Pedro não falava, só recebia ordens e marchava. Certo dia o Roberto entrou pela porta do quarto ofegante e excitado. Mal conseguia falar. Todos perguntaram o que estava acontecendo. Entre uma e outra respiração forte, disse: "o Pedro falou!". Todo mundo ficou imóvel e alguém perguntou: "como foi...?".
Havia muitos meses que o residente não mais chamava o Pedro para entrevistá-lo no consultório. Era uma pura perda de tempo. Preferia vê-lo na enfermaria, perto de sua cama. Comunicava-se com ele através de sinais e de pequenos bilhetes escritos.
Naquele dia, ao entrar na enfermaria, todos os pacientes ficaram em silêncio e só o Pedro falou: "bom-dia, doutor!". Esse sonoro "bom-dia" deixou o residente boquiaberto e provocou uma salva de palmas entre os pacientes. Em seguida o Pedro fez um breve discurso e foi novamente aplaudido pelos pacientes e também pelo residente. Não parava de falar com todo mundo, num ritmo tão rápido que mais parecia um locutor esportivo. Estava descontando o tempo em que permanecera calado.
O Roberto o conduziu para o consultório e lá passou a ouvir as razões desse milagre. Disse-lhe o Pedro que um dia estava em sua casa, trancado no quarto, quando uma voz que vinha de dentro de sua cabeça deu-lhe uma ordem. Era uma ordem que o proibia de falar durante um ano inteiro. Se conseguisse cumprir teria de volta a namorada e poderia casar-se com ela. Anotou num pedaço de papel o dia e a hora em que a voz imperativa o proibira de falar e decidiu fazer a promessa. Ficaria um ano sem falar para poder reconquistar a namorada.
Dito efeito. O Pedro mostrou para o residente o papel onde anotara a data e a hora da promessa. Estava tudo certo, não passou nem um minuto sequer do tempo combinado. Fazia um ano certo que ele parara de falar e agora reconquistara a voz. O acordo estava cumprido e o papel era o documento original desse acordo.
Pedro queria sair do hospital naquele dia para encontrar-se com a namorada e mostrar a ela aquele comprovante do acordo cumprido. Ele era um rapaz ingênuo e tímido. Nunca havia experimentado uma relação sexual com mulher. Só sabia masturbar-se e contar piadas eróticas no tempo em que falava. Na verdade não tinha namorada. Havia se apaixonado pela vizinha e não conseguia aproximar-se dela para falar do seu amor e do seu desejo. Sua namorada era fruto da sua imaginação e a "voz" que lhe dera a ordem era uma alucinação da sua própria mente, uma defesa que ele poupava o sacrifício e a dificuldade que tinha em fazer contato com as mulheres.
Introduzimos Pedro em um grupo de ajuda e o fomos auxiliando a conhecer o mundo feminino. Descobrimos que sua família era evangélica e observava valores ultramoralistas. Sua mãe era uma mulher fortemente castradora, parecia mais um sargento-de-saias. Pedro crescera recebendo ordens e ameaças divinas, acreditando no fogo do inferno e no juízo final.
Fomos ensinando a ele como escrever cartas românticas, fazer poesias e aproximar-se com segurança das mulheres. Participavam do nosso grupo duas assistentes sociais e algumas estudantes de medicina, todas muito bonitas. Sentiam medo que Pedro se apaixonasse por elas e sofresse novas decepções. Nós, os homens do grupo, estimulávamos para que ele falasse dos seus sentimentos e desejos. Não era proibido falar de coisas tão bonitas, tão naturais. Ele não precisava ter pressa, só precisava treinar. Acabaria encontrando uma verdadeira namorada que gostasse dele.
Após algum tempo observamos que havia parado de marchar, não empunhava mais o "fuzil" e nem colocava o "capacete" na cabeça. Os outros pacientes insistiam, mas ele parecia mais interessado na arte de escrever cartas e paquerar.
Havia no hospital três grupos que faziam o trabalho de acompanhamento intensivo de pacientes. Mas, entre nós, as informações da evolução de cada caso eram trocadas com muita facilidade. Todos ficavam sabendo como se desenvolvia cada plano de trabalho e das suas dificuldades e êxitos. Escolhíamos os pacientes mais carentes e, de preferência, os do grupo da "abandonoterapia". Sabíamos que não era possível atingir toda a população hospitalar para acompanhamento intensivo. O hospital era pobre e não possuía recursos para aumentar o número de funcionários e residentes. Do grupo da "abandonoterapia" eram selecionados os pacientes mais regredidos e complicados. Precisávamos aprender a lidar com esses casos.
O grupo que ajudava Pedro atendia vários outros pacientes, mas, para cada caso, mudava de nome; o grupo de Pedro chamava-se "Amor e Desejo". Nesse plano de trabalho o objetivo era: “fazer com que a voz de Pedro, saindo da cabeça, descesse para o coração, ganhasse impulso para cima e saísse pela boca”. Queríamos que aprendesse a falar em alto e bom som sobre seus sentimentos, para que sua amada o ouvisse e pudesse compreendê-lo. Se não conseguíssemos isso, Pedro continuaria a ser um soldado raso, sem voz e sem vontade própria. Um recruta que só saberia marchar pelas enfermarias da vida com um capacete de papel na cabeça e um cabo de vassoura no ombro. Um ridículo soldadinho mudo que só sabia cumprir ordens e bater continência para os outros.
Certa tarde, numa reunião do grupo Amor e Desejo, Pedro, timidamente, fez uma comunicação. Estava gostando de uma jovem paciente da ala feminina. Ela tinha dezoito anos, morena, cabelos longos e negros, muito calada e tímida como ele. Já haviam conversado em duas oportunidades: a primeira vez foi dentro do hospital, no salão de festas, onde havia ocorrido uma tarde-dançante. Era uma festa que acontecia mensalmente para estimular a ressocialização entre pacientes da ala masculina e feminina. A segunda vez foi durante um passeio ao zoológico da cidade. O seu nome era Rita.
Éramos muito criticados pelos conservadores do hospital por causa dessas festas e passeios. Nos acusavam de estimular a libidinagem entre os pacientes. Enquanto os namoros aumentavam e os pares já podiam abraçar-se e beijar-se furtivamente, diminuíam os casos de homossexualismo masculino e feminino nas alas, ao mesmo tempo em que baixava a freqüência das agressões. Tínhamos que ter muito cuidado com esses encontros para evitar casos de gravidez dentro do hospital e a possível disseminação de doenças de transmissão sexual. Os grupos de homens e mulheres, não poderiam ter mais de trinta pessoas; um grupo maior seria impossível de ser controlado. Nas primeiras festas havíamos encontrado alguns casais escondidos no banheiro ou atrás de árvores, se preparando para terem relações sexuais. Estávamos pisando num terreno perigoso e muito polêmico dentro do hospital.
Convidamos Rita para participar do nosso grupo. O casal, muitas vezes de mãos dadas, expressava seus sonhos e fantasias de amor. No início se mostravam tímidos e desconfiados, mas, com o tempo, passaram a falar e a trocar olhares significativos. Estavam aprendendo que amor e desejo também fazem parte da vida, são bons e só necessitam de uma dose de bom senso para evitar o surgimento de gravidez irresponsável. Quando amor e desejo ficam muito reprimidos podem "adoecer" a cabeça das pessoas, transformando-as em “bonequinhas de pano” ou “soldadinhos de chumbo”. Ambos já podiam abraçar-se e beijar-se à vontade nas festas. Não precisavam ficar envergonhados, escondendo-se pelos cantos, para manifestarem o seu amor.
Pedro conseguira ter a primeira namorada, de verdade, dentro do hospital e ambos progrediam muito nas outras atividades individuais e de grupo. Trocavam correspondências pelo "Correio Sentimental", órgão de comunicação entre pacientes das alas masculina e feminina, coordenado pelas assistentes sociais.
Nos grupos de atividades artísticas de Práxiterapia (terapia ocupacional) o número de cartões cheios de corações com flechas, mensagens românticas, convites eróticos e frases poéticas, aumentou consideravelmente após o inicio das festas e passeios conjuntos.
Numa tarde de terça-feira, o grupo Amor e Desejo teve a mais infeliz das idéias. Convidou dois familiares de Pedro para participarem da reunião do grupo e comunicou o plano de trabalho que estava sendo desenvolvido para sua recuperação. Encerrada a reunião os dois parentes se dirigiram ao diretor do hospital e nos acusaram de perverter os princípios morais e religiosos de Pedro; de atentar contra a sua castidade e induzi-lo ao pecado. Éramos os demônios que queriam destruir a pureza de Pedro e o estávamos impedindo de trilhar pelo caminho da salvação de sua alma rumo ao Reino do Senhor.
No dia seguinte Pedro foi retirado do hospital pela família enfurecida. Retornou ao mesmo quartel familiar onde aprendera a ter alucinações, receber ordens de silêncio e obediência, marchar com cabos de vassoura e com capacetes de jornal. Só Rita permaneceu no nosso grupo e com o tempo arranjou outro namorado, para quem escrevia e mandava cartões toda semana.
Coitado do Pedro. Será que voltou a ser soldado raso? Ou se insurgiu contra os seus superiores e mandou todo mundo a vassouradas para as profundezas do inferno? Não tivemos mais notícias dele. A partir dessa fatídica terça-feira o nosso grupo, a exemplo de Pedro, também fez uma promessa: "jamais voltaríamos a convidar fanáticos religiosos para participar das nossas reuniões de acompanhamento intensivo de casos".
quinta-feira, 15 de abril de 2010
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